Em abril do ano passado, o governo Lula apresentou ao Congresso a proposta do arcabouço fiscal, que nasceu com a dura missão de substituir o teto de gastos — ambos são mecanismos de gestão do orçamento federal. Entre outros pontos, o documento fixou a meta de zerar o déficit das contas públicas em 2024 e gerar superávit de 0,5% do PIB em 2025. Na economia e na política, contudo, as promessas costumam ficar distantes da realidade. Na ocasião, analistas habituados a investigar as contas públicas disseram que o objetivo dificilmente seria cumprido. Um ano depois, está evidente que o governo não alcançará o que havia anunciado. Na segunda-feira, 8, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o cenário mudou — uma desculpa que serve para quase tudo na vida — e disse que buscará “uma meta factível” para o país. “Estamos esgotando o tempo para fazer as contas necessárias”, disse Haddad. Nas entrelinhas, foi uma confissão de culpa que expõe a dificuldade da gestão Lula para administrar bem as contas do país. “Somos muito bons em formular regras, mas não em segui-las”, diz o economista Alexandre Schwartsman. “Fazer arcabouço sem proposta para controlar o gasto não vai dar certo.”
O governo está diante de um dilema. Sem o cumprimento do resultado fiscal em 2024 e 2025, gatilhos de restrição de gastos discricionários — aqueles que não são obrigatórios — poderiam ser acionados pelas regras do arcabouço. Uma saída seria alterar as metas e fazer do arcabouço, na prática, uma letra morta, o que condenaria o país a rediscutir objetivos fiscais ano após ano. Esse parece ser o caminho para uma gestão gastadora como a petista. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, manifesta desprezo pela responsabilidade fiscal. “Por mim, faria um déficit de 1% ou 2% do PIB”, disse ela, durante evento do partido. Nos próximos dias, o governo vai bater o martelo sobre a meta que constará no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025 que será apresentado ao Congresso. O texto poderá ratificar o objetivo de geração de superávit primário de 0,5% do PIB ou indicar uma “correção de rota”. Por diversas vezes, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou que a casa vai perseguir o cumprimento das metas fiscais.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a ministra do Planejamento, Simone Tebet, até tentaram colocar algum freio nas intenções gastadoras de seu próprio governo. Mas ambos são vozes cada vez mais isoladas. “É um jogo de gato e rato: na hora em que você afrouxa a meta, aparecem demandas, do governo e do Congresso, para usar aquele espaço”, diz o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper. “O arcabouço tende a se exaurir.” O desafio reside nas condições fiscais estipuladas desde o início do governo, segundo as quais o aumento dos gastos exige ajustes subsequentes nas receitas. Embora tenham sido tomadas medidas nessa direção — alguns resultados positivos na arrecadação, de fato, vieram —, não está claro se a melhora é permanente ou se será suficiente para cobrir despesas mais infladas.
Por ora, o governo criou uma série de receitas não recorrentes, como a taxação de fundos exclusivos dos ricos e de casas de apostas, e a volta do voto de qualidade pró-União nos julgamentos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais. Ainda assim, é apenas um devaneio a realização de um superávit de 0,5% do PIB no próximo ano. As projeções indicam um déficit de 0,5% do PIB em 2025, o que torna cada vez mais provável um ajuste da meta. A mudança para um superávit de 0,25% do PIB, cogitada por Haddad, também é considerada desafiadora. “É provável que uma alteração mais modesta, como saldo zero ou déficit, seja mais realista”, diz Silvio Campos Neto, economista da Tendências Consultoria.
A boa prática macroeconômica prega que mudar objetivos é ruim. Alterar a meta significaria perder credibilidade, poderia afastar investimentos e, afinal, prejudicar o crescimento econômico. Em 2024, considerando o cenário atual, é improvável que o governo cumpra a meta de resultado zero, mas é preciso tentar. A equipe econômica está apertando a arrecadação, implementando medidas como o projeto de lei que ressuscita o DPVAT, seguro de veículos que levaria 15 bilhões de reais para os cofres públicos, e analisa outras iniciativas arrecadatórias, como o aumento da distribuição de dividendos da Petrobras, algo que uma ala influente do governo rejeita.
A demora em tomar medidas de contenção do gasto poderá resultar em pressões políticas adicionais, que se intensificam em anos de eleição. Há também o risco de sanções fiscais, caso o governo não atinja a meta estabelecida, o que exigiria reduções drásticas nas despesas do ano seguinte. Esse processo traria de volta o risco da inflação e interromperia o ciclo de corte de juros. “O cenário fiscal não está sob controle, e a dívida vai continuar subindo”, diz Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. “Ou seja, a Selic não vai conseguir sair muito da casa dos dois dígitos.”
Em política fiscal, o que importa é a trajetória. Em 2022, na gestão do ex-ministro Paulo Guedes, as contas do governo federal registraram superávit primário de 54 bilhões de reais após oito anos no vermelho. Nem por isso o resultado foi comemorado como uma final de Copa do Mundo. Nas planilhas, foi uma vitória. Na prática, nem tanto. O resultado foi conquistado às custas do não pagamento de precatórios, aqueles que o governo deve necessariamente honrar após condenações na Justiça. Essa bomba bilionária foi jogada para frente. O governo Lula, acertadamente, antecipou os pagamentos, mas, mesmo sem esse passivo gigantesco, o déficit de 2023, que foi de 2,1% do PIB, seria próximo de 1,5%. Apesar da maquiagem, é fato que as contas públicas pioraram na gestão petista. Para ter ideia, em um ano a relação dívida/PIB pode ir de 74,3% para 77,3%. Enquanto o governo não conduzir a economia do país com austeridade, o cenário não deverá melhorar.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888