Uma tradição do Estado brasileiro é gastar mal os recursos de que dispõe, investindo pouco — e de forma desordenada — para manter uma estrutura inchada e improdutiva, com margens para desperdícios e desvios de verba. O Orçamento enviado para o Congresso Nacional no último dia 31 é um retrato perfeito dessa situação. O documento prevê o menor valor destinado a investimentos públicos da história. Serão 22,4 bilhões de reais, dos quais apenas 4,7 bilhões de reais para infraestrutura. Tal valor equivale a aproximadamente 0,21% do PIB brasileiro e seria uma boa notícia se fosse resultado de uma estratégia sólida, voltada para o Estado mínimo e amparada pela atuação da iniciativa privada. Na verdade, é o resultado de uma máquina disfuncional, na qual serão destinados no ano que vem mais de 360 bilhões de reais para despesas com pessoal e encargos sociais e outros 860 bilhões de reais para benefícios previdenciários — em conjunto, o equivalente a 60% dos gastos públicos para 2023.
Com o volume destinado aos investimentos, o governo se aproxima de uma situação definida pelo termo em inglês shutdown. Isso acontece quando o dinheiro não é suficiente nem mesmo para bancar a manutenção da infraestrutura pública do país, uma vez que, segundo estimativas de especialista no assunto, seria necessário um mínimo de 0,5% do PIB para evitar a deterioração de escolas, hospitais e rodovias federais. “Essa situação é uma decorrência direta do fato de o governo não ter feito as reformas na velocidade esperada desde a implementação do teto de gastos e que eram decisivas”, diz Alexandre Manoel, ex-secretário do Ministério da Economia. “Obviamente, imprevistos internos e externos, como a pandemia e a guerra da Ucrânia, dificultaram muito a agenda das reformas, mas não deixa de ser preocupante o fato de a União não estar conseguindo nem dar conta do desgaste do capital público que o país já tem.”
Desde que assumiu a pasta da Economia, em janeiro de 2019, o ministro Paulo Guedes deixou claro que sua gestão seria pautada pela redução do peso do Estado, uma agressiva política de privatizações e uma combinação de reformas estruturantes para dar maior eficiência e conter os gastos desnecessários da máquina pública. Ao fim do mandato, o que se tem é um projeto que ficou no meio do caminho, com resultados frustrantes. A reestruturação da Previdência aprovada no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro foi uma conquista que evitará a insolvência das contas públicas na próxima década, mas não será suficiente para resolver a questão. O volume de gastos obrigatórios do governo atingiu 93% da previsão do teto de gastos e precisa ser reduzido. Mas, infelizmente, os cortes não aconteceram no volume necessário. O próprio presidente Bolsonaro sabotou a reforma administrativa proposta por Guedes, com receio de afrontar interesses corporativistas e mexer nos salários e benefícios dos servidores.
A ideia de Estado mínimo, em que o governo deixa de ser o promotor do crescimento econômico e das obras de infraestrutura e transfere essa tarefa para a iniciativa privada, é um dos pilares do modelo liberal. Para que isso funcione, entretanto, é crucial que o poder público estimule com vigor os investimentos privados, as privatizações de ativos ou pelo menos parcerias público-privadas, três bandeiras corretamente defendidas pela gestão atual. O nível de investimento privado tem aumentado e alguns marcos regulatórios aprovados, como o do saneamento, servem de estímulo a esse movimento. Por outro lado, a realidade brasileira é incompatível com um Estado que zere o investimento público, principalmente em setores que não despertam o interesse privado. Estimativa realizada pela Inter.B Consultoria Internacional de Negócios dá conta de que, hoje, a soma dos investimentos públicos e privados em infraestrutura no Brasil está em 1,7% do PIB. Para zerar todas as deficiências do país, deveria chegar a no mínimo 4%. “O problema é que as despesas com investimentos são as mais fáceis de ser cortadas, daí o fato de o governo avançar sobre elas em detrimento de outros gastos”, afirma Bráulio Borges, pesquisador-associado do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas, especialista na área.
O fato é que numa situação de aperto econômico como a que o país passa, a reforma administrativa é urgente e deveria ser prioridade. Em 2020, o governo chegou a encaminhar uma Proposta de Emenda Constitucional (a PEC 32) ao Congresso, que foi aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) e na Comissão Especial, mas nunca foi levada a plenário — em parte pelo desinteresse dos parlamentares e em parte por falta de empenho do próprio governo. Em paralelo, é fundamental para o país melhorar a qualidade dos investimentos. “O último período de aumento do investimento público foi no segundo mandato de Lula e no primeiro de Dilma Rousseff, e o que se viu foi uma sucessão de investimentos mal planejados e mal executados que hoje viraram sucata”, afirma o economista Marcos Mendes, pesquisador de políticas públicas do Insper. “O Brasil criou um padrão de gastos públicos em que os grupos que se organizam melhor e conseguem fazer maior pressão política levam parcelas maiores do Orçamento.”
Recentemente, os próprios parlamentares tomaram para si o poder de decisão sobre um pedaço relevante do Orçamento, por meio das emendas e do fundo partidário e eleitoral, aproveitando a fragilidade política dos governos de Dilma e de Bolsonaro. Com isso, a classe política abocanhou parcela relevante do Orçamento, para utilizar de acordo com os seus interesses. Para 2023, enquanto o governo controlará o destino dos parcos 22,4 bilhões de reais destinados aos investimentos, as emendas parlamentares vão somar 38,8 bilhões de reais. Apenas para as emendas de relator estão destinados 19,4 bilhões de reais. Concedidas pelas lideranças do Congresso a propostas e projetos originados nas duas Casas, elas são pouco transparentes, não trazem a necessidade de justificar a destinação dos recursos, e não obedecem uma lógica de prioridades integradas à estratégia do governo. Em detrimento dos investimentos coordenados pelo governo, na maioria das vezes são ações de caráter paroquial, com objetivo de atender a interesses políticos, sujeitas a risco de obras e compras superfaturadas em regiões em que nem sempre são prioridade.
Já não fosse a situação preocupante o suficiente, não estão previstos para 2023 recursos para diversas promessas feitas pelos principais candidatos à Presidência, entre eles o atual dono do Orçamento, o presidente Bolsonaro. Apenas a manutenção do Auxílio Brasil no piso atual de 600 reais custará aos cofres 52,5 bilhões de reais. Para bancá-lo, o governo tem duas possibilidades. A primeira é modificar as regras do teto de gastos, estabelecido em 2017, para acomodar a despesa. A segunda é ressuscitar o fantasma do aumento de impostos.
Nos últimos dias, Paulo Guedes tem sinalizado que pode se valer dos dois recursos caso Bolsonaro seja reeleito e ele prossiga no comando do ministério. “Se a guerra da Ucrânia continuar, partimos para uma solução temporária prorrogando o estado de emergência e pagamos os 600 reais. Agora, se acabar a guerra e precisarmos de uma solução estrutural permanente, a Câmara já aprovou o imposto sobre lucros e dividendos”, declarou o ministro em um evento no Rio de Janeiro, no último dia 1º, referindo-se ao projeto que altera regras do imposto de renda (PL 2337/21), aprovado em setembro do ano passado. A proposta, parte da chamada segunda fase da reforma tributária, está atualmente em análise na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado.
Seja quem for o vencedor das eleições, o governante do país enfrentará uma situação difícil em 2023 — e o Orçamento reflete bem os problemas que terá pela frente. As promessas de campanha enfrentarão o teste da realidade e medidas impopulares terão de ser implementadas. É o preço a ser pago pela negligência com as contas públicas, pela incapacidade de planejar investimentos e por reformas indefinidamente adiadas apesar de fundamentais para o futuro do país.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806