Foi-se o tempo em que as discussões se davam nos espaços restritos da Academia. Para participar dos debates, era importante ser reconhecido como um sábio ou erudito no assunto. Seria a garantia de elevar o discurso, mas também poderia servir para deixar de fora quem não se encaixasse nos padrões aceitos por cada tempo e geografia, e isso excluiu muita gente que daria diversidade e qualidade às opiniões. O mundo das redes sociais democratizou as discussões. Infelizmente, isso também aumentou o barulho e colocou quase que em mesmo pé de igualdade quem dedicou uma vida a estudar um assunto e quem formou ideias apressadas. Nesse novo mundo, entre os ônus e as glórias da internet, opiniões infundadas parecem ganhar o mesmo respaldo, ao menos em termos de espaço, que o destinado aos pensamentos mais sofisticados. “No final de contas, o valor de um Estado é o valor dos indivíduos que o compõem”, ensinou, certa vez, o expoente liberal inglês John Stuart Mill (1806-1873). Ele estaria decepcionado com o que os indivíduos, no caos das redes, argumentam, com pouco embasamento ou vergonha, sobre aquilo que foi o seu objeto de estudo e a linha de pensamento que muito ajudou a desenvolver: o liberalismo.
A lenga-lenga ganhou corpo com a ressurreição do filósofo italiano marxista Domenico Losurdo (1941-2018), e a sua crítica ao liberalismo e ao que considerava ser a essência deste pensamento; enquanto minimizava, por outro lado, as barbáries protagonizadas pelo ditador Josef Stalin, responsável pelo genocídio de mais de 20 milhões de pessoas na antiga União Soviética. Simplificando a sua argumentação, o liberalismo seria culpado de ser conectado intrinsecamente com o colonialismo e com a escravidão, e teria excluído de seu ideal de liberdade minorias, mulheres, negros e a classe trabalhadora em geral. Já o stalinismo, apesar de todos os seus crimes, deveria ser perdoado ao menos por tentar, ou por estar “do lado certo” da história, porque trazia avanços para os trabalhadores ou discriminava menos as mulheres. É importante citar que Losurdo não nega as atrocidades cometidas pelo regime de Stalin, mas as minimiza em face ao que seria um bem maior, perdão que o filósofo não estende aos liberais que apoiaram em alguma medida regimes autoritários ou que se filiaram a ideias muito dominantes de suas épocas. Além de certo anacronismo, o argumento desconsidera, por exemplo, que diversas minorias se sentiram mais protegidas na Europa capitalista da segunda metade do século 20 do que nos países da Cortina de Ferro ou em outras ditaduras de esquerda. Se, nas Américas, predominaram regimes autocráticos de direita — associando para a maior parte da população local essa linha de pensamento a ideias conservadoras –, além do muro de Berlim, a coisa é diferente e o progressismo ficou no campo dos opositores ao poder. Pergunte a um jovem argentino ou brasileiro qual lado do espectro defende os direitos dos gays e depois a mesma coisa a um polonês e lituano e as respostas serão opostas. “Existe, por um lado, o discurso do bem; por outro, o da ordem. Mas vemos uma radicalização de liberais em regimes autoritários na América Latina, o que incute num erro histórico por parte deles”, diz Samuel Pessôa, da Fundação Getulio Vargas.
Há semanas, a discussão torta toma conta das redes. Foi o suficiente para as esquerdas partirem ao ataque dos defensores do liberalismo, e para as direitas responderem em contra-ataque que o esquerdismo, num sinal de atraso, ainda estaria preso ao stalinismo. Nessa confusão, a própria esquerda teve também a oportunidade de praticar o seu esporte favorito, brigar entre si. E, na barafunda da internet, foram arrastados economistas respeitados para o meio de todo esse debate. Muitos parecem ter sentido que seria importante trazer mais razoabilidade à troca de ideias e explicar conceitos básicos do pensamento liberal para um público mais amplo, mesmo sabendo serem prejudicados pelos limites de caracteres e por uma nem sempre boa compreensão e disposição de lado a lado.
Além da “passada de pano” (para se ater aos termos da rede) para os crimes contra a humanidade na conta do ditador soviético, sobrou para as vertentes liberais a pecha de autoritária. Corroborou para a falsa equiparação a participação de gurus liberais em governos autoritários, o que arranhou a imagem de um ideal. É o caso do símbolo de uma das vertentes da economia liberal Friedrich Hayek (1899-1992), um dos maiores nomes da Escola Austríaca.
Depois de uma visita ao Chile do ditador Augusto Pinochet (1915-2006), ele defendeu o regime autoritário dizendo que a democracia deve ser considerada como um meio, não como um fim em si mesmo. “Eu não fui capaz de encontrar uma única pessoa, mesmo no tão caluniado Chile, que não concordou que a liberdade pessoal estava muito maior sob Pinochet do que sob [Salvador] Allende”, dissertou ao jornal The Times. Mas, mesmo que os austríacos defendessem ideias econômicas caras a pensadores de outros ramos da direita, é preciso lembrar que os valores do liberalismo se estendem muito além das diretrizes econômicas. “O liberalismo é mais do que uma teoria econômica, mas uma vertente moral, que se baseia na defesa da liberdade e da responsabilização do cidadão, que é livre para tomar suas decisões”, diz o cientista político Luiz Felipe d’Ávila. “Todos focam só na liberdade econômica, equiparada ao capitalismo. Não é só isso”, completa ele.
Valores caros tanto às direitas quanto às esquerdas atuais surgiram com pensadores liberais. Foi um dos pais dessa linha de pensamento, o filósofo inglês John Locke (1632-1704), que propagou a ideia de liberdades individuais. Ou seja, a permissão de agir livremente desde que os atos de cada pessoa não prejudiquem os outros. Para ele, o Estado não deveria se ocupar com questões de vida pessoal. “Casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não deve ser problema do Estado”, afirma Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central. “Existe um subconjunto da questão econômica, mas que não pode ser desfiliada das tradições progressistas do liberalismo em questões comportamentais.”
No Brasil, porém, nuances de esquerda apropriaram-se de discursos liberais. “A pauta social foi aprisionada pela esquerda e sobrou, no Brasil, para o liberalismo, a economia. Igualdade de oportunidade de gênero, sexual, racial: tudo isso faz parte do liberalismo. O princípio da liberdade de ser o que quiser, desde que não interfira nas liberdades dos outros”, diz Elena Landau, diretora de desestatização do BNDES no governo de Fernando Henrique Cardoso. Não se pode esquecer que o supracitado Mill dedicou todo um ensaio aos direitos das mulheres, A Sujeição das Mulheres, publicado em 1869. Era um tema ainda em sua infância e que pouco interessava a Karl Marx no mesmo período, por exemplo. É de Mill também a frase: “A única liberdade que merece este nome é aquela de perseguir o seu próprio bem de sua própria maneira, desde que não tentamos privar os outros das suas, ou impedir os seus esforços de obtê-los”.
A oposição a ideários liberais, vá lá, é completamente válida em uma democracia. O incabível é equiparar o stalinismo a qualquer diretriz político-econômica que defenda as liberdades individuais — o que vale, até mesmo, dentro da própria esquerda. Um lançamento da edição brasileira de uma revista socialista, a americana Jacobin, arraigou discussões dentro da própria bolha da esquerda em torno da representação de Josef Stalin na capa, ao lado de outros pensadores canhotos. Consultora editorial da revista, a socióloga Sabrina Fernandes, responsável pelo canal Tese Onze, é uma das mais conhecidas referências atuais do estudo do marxismo no Brasil e mostra-se incomodada com a valorização de Stalin como representante da esquerda nas discussões nas redes. “Como marxistas, não temos como não nos preocuparmos com o surgimento de uma lógica que endeusa Stalin, e que relativiza muitas políticas do período”, diz ela, que, porém, atribui aos liberais uma extrapolação da crítica ao regime, usando os achaques à ditadura soviética como uma mácula ao marxismo em si. “Nós, marxistas, devemos naturalizar o fato de que Stalin existiu, sim, mas avaliar o que não queremos fazer, como erraram, quais linhas foram cruzadas. Mas sem ceder às pressões liberais que usam essa questão para disseminar um anticomunismo generalizado”, defende.
A diferenciação, segundo ela, está no conceito de liberdade defendido pelas matizes democráticas de direita e esquerda. A briga é difusa. Enquanto pessoas da esquerda atribuem a liberais o protagonismo em torno de movimentos que defendiam, por exemplo, a escravidão, elas esquecem que havia muitas figuras históricas ligadas ao pensamento que se levantavam contra as arbitrariedades. Tome como exemplo o quadro que ilustra esta reportagem, O Veredito do Povo (1855), de George Caleb Binham, o abolicionista e grande pintor do romantismo americano. Na pintura, ele retrata a importância e também toda beligerância de um dos principais símbolos da liberdade democrática nos Estados Unidos, que seria tomado pela Guerra Civil seis anos depois: o voto. Bingham capta a empolgação em torno de um dos principais valores das democracias representativas. Mas sem se abster de mostrar toda a complexidade de se criar uma nação com valores justos. Talvez motivado pelo nome do quadro, que é a terceira parte de uma enigmática trilogia de pinturas, Donald Trump emprestou ele do St. Louis Art Museum para servir de fundo para o evento de Gala Inaugural de sua presidência, em 2017. O político, no entanto, não se ateve a toda a complexidade da cena. Especialistas de história da arte analisam que Bingham estaria representando uma vitória democrata em uma eleição de condado, num momento que esse partido estava do lado dos escravocratas contra o Partido Whig, de Abraham Lincoln e antecessor do atual Partido Republicano. Bingham, de certa forma, estaria antecipando em suas obras as rachaduras que levariam ao desastre da guerra poucos anos depois.
Como na história do passado, na grita generalizada entre liberais e esquerdistas nas redes sociais, perdeu o debate. “Neoliberais jamais deveriam assumir empregos ou cargos públicos, jamais deveriam participar de eleições. Tornar-se presidente da República sendo um neoliberal é uma autocontradição que destrói o sentido do cargo”, cravou a filósofa petista Márcia Tiburi no Twitter na última semana. Ela parece ter confundido liberalismo com anarcocapitalismo, o que apenas mostra o quanto o radicalismo é péssimo para o debate público. A afirmação também ajuda a ilustrar como o próprio conceito de liberalismo é mal entendido no Brasil atual, em que os termos direita, esquerda, conservador e progressista são confundidos e deturpados o tempo todo. Poucas semanas atrás, o senador Márcio Bittar atacou a indexação de salários que o ministro Paulo Guedes deseja combater como uma coisa de esquerda, sem saber que um dos maiores nomes do liberalismo brasileiro, Mário Henrique Simonsen (1935-1997), foi quem a introduziu na economia brasileira. Dias depois, o presidente Jair Bolsonaro defendeu a indexação. Até mesmo uma obviedade ficou perdida nessa confusão: assim como a esquerda e qualquer outro grande pensamento da humanidade, o liberalismo tem diversas vertentes. O erudito José Guilherme Merquior (1941-1991), importante crítico liberal do país, conferia grande diversidade ao campo do qual era defensor. O liberalismo teria apenas três bases: os direitos naturais, o constitucionalismo e a economia de mercado. A partir deles, se assenta toda a evolução e diversidade que vem do Iluminismo de Locke, Montesquieu e Adam Smith, atravessa a renovação de John Meynard Keynes na primeira metade do século 20, o neoliberalismo de Milton Friedman e a Escola de Chicago, e chega tanto ao liberalismo universitário americano de direitos individuais, de raça e de gênero ligado ao Partido Democrata — atacado por Trump — quanto ao liberalismo econômico de governos na América do Sul e na Europa.
A presidência de Bolsonaro, que abarca o pensamento liberal de Guedes no comando da economia do país, acentuou e confundiu os debates por aqui sobre os conceitos e se, de fato, a gestão do capitão pode ser tida como liberal. Isso abriu uma disputa de qual vertente teria autoridade moral para fazer oposição a ele. “O bolsonarismo está aí e existe uma discussão de que campo vai ser antibolsonaro. Liberais e comunistas estão disputando este espaço”, completa Sabrina. Enquanto aqueles que prezam pelas liberdades, sejam quais forem elas, amealham-se em campos de batalha e não entendem os fundamentos sobre o que discutem, perde o Brasil. Entre todas as gritas, o que resta é simplesmente, o valor democrático como bem comum — algo tão maltratado. “A liberdade é mais importante do que o pão”, disse o dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980). Seja quais forem as liberdades, o importante é, sempre, brigar por elas.