Eu nasci em Porto Alegre no dia em que o papa João Paulo II chegou à cidade. Acho que foi por isso que tive uma infância abençoada. Cresci em um bairro pobre da cidade, mas a minha família era muito intelectualizada. Todos os meus tios fizeram curso superior. Nos anos 1970, no auge da ditadura militar, uma família preta estudava na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Era algo realmente muito raro. Apesar de ter crescido em um bairro pobre, a prioridade de investimento na minha casa sempre foi educação. Meu pai trabalhava como metalúrgico, e minha mãe, como professora de história. O dinheiro era limitado, então nunca saímos da periferia. Meus pais eram ativistas do movimento negro. Cresci consciente dos problemas ao meu redor. Eu sempre soube o que significava o racismo, que desde cedo esteve presente na minha vida.
A primeira violência que sofri foi ainda criança, aos 4 anos: eu e meu irmão éramos os únicos pretos da creche. Lá, todos os dias, acontecia um sorteio para definir quais crianças iam lavar os copos de toda a classe. Curiosamente, éramos sorteados todos os dias. Eu chegava em casa chorando, cansada por ter feito todo aquele trabalho, mas as professoras diziam que eu tinha “sorte”. Eu e meu irmão não éramos crianças bagunceiras, mas ele foi trancado muitas vezes no banheiro da escola, como forma de castigo por algum suposto mau comportamento. As crianças brancas que faziam bagunça não eram punidas dessa forma. Foi ali que meus pais nos explicaram que nós seríamos perseguidos por causa da cor da nossa pele. Desde cedo entendi que, além da educação, o empoderamento econômico é o que, de fato, me abriria espaços. Por isso, sempre sonhei muito grande.
Virei economista, fiz mestrado e doutorado, trabalhei no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e morei em Washington, no Catar e no Haiti, estruturando projetos de igualdade de gênero em parceria com a iniciativa privada. Apesar de minha trajetória, ainda sou muito subestimada. É assim que o racismo se manifesta na minha vida hoje em dia. Infelizmente, é também no Brasil que eu mais sofro esse tipo de discriminação.
Houve um episódio que me marcou: no BID, liderei uma missão do banco no Nordeste brasileiro. Estávamos estruturando um projeto milionário de financiamento para incluir beneficiários do Bolsa Família em iniciativas empreendedoras. Em uma reunião, junto à secretaria de desenvolvimento de um estado da região, enquanto eu apresentava o tópico, o secretário me interrompeu e questionou a minha nacionalidade. Na cabeça dele, não era possível que uma mulher como eu, brasileira, estivesse naquela posição de destaque. É esse o viés de subestimação que me persegue por onde ando. Quando entro numa sala, minha pele e meu cabelo são políticos. Por isso, nunca pensei em desistir.
Hoje em dia, sou vice-presidente de impacto do iFood e atuo também como consultora em projetos de afroempreendedorismo para que haja cada vez mais investidores pretos. Sou feliz com o que faço. O meu trabalho no iFood tem a missão de reduzir desigualdades sociais. Desenvolvemos programas para a obtenção do diploma do ensino médio, bolsas em faculdades ou em cursos de tecnologia. Temos 280 000 entregadores cadastrados na plataforma e estimamos que 70 000 não completaram a escola. Meu sonho é garantir o acesso ao ensino médio a pelo menos 200 000 pessoas, considerando entregadores, familiares e funcionários de restaurantes parceiros. Sinto que tudo o que fiz na vida está culminando nesse projeto, que consiste em causar impacto por meio da educação. Tenho muito orgulho de ser preta e espero que muitos outros sintam isso também.
Luana Ozemela em depoimento dado a Pedro Gil
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886