Economista de formação, o holandês Sylvester Feddes assumiu em fevereiro passado a presidência da farmacêutica suíça Novartis no Brasil. Sua missão não será nada fácil. Nos últimos anos, a concorrência entre as empresas do setor ficou ainda mais acirrada e a busca por novos medicamentos se tornou o melhor caminho para trazer retorno aos acionistas. Nesse contexto, a Novartis perdeu duas grandes oportunidades: desenvolver uma vacina para a covid-19 e remédios para perda de peso, como o Ozempic, fabricado pela dinamarquesa Novo Nordisk. Na entrevista a seguir, Feddes diz que a Novartis, com faturamento anual de mais de 45 bilhões de dólares no mundo, sendo 1 bilhão no Brasil, pretende se destacar com medicamentos dotados de alta tecnologia, especialmente nas áreas de oncologia, imunologia e cardiovascular. Ele também fala sobre os investimentos no país e analisa o sistema de saúde local. Confira os principais trechos.
A Novartis está sendo pressionada por acionistas para encontrar remédios tão revolucionários quanto o Ozempic? Primeiro de tudo, você tem que tomar cuidado com hypes. É preciso ser muito estratégico sobre aonde quer ir e onde quer fazer a diferença. A empresa tem uma direção clara, tomada quando começamos a desinvestir em unidades como as de saúde animal e cuidados com os olhos, para ser uma farmacêutica pura, que investe em pesquisa e alta tecnologia. Nessa jornada, há muitas oportunidades: oncologia, cardiovascular e imunologia, para citar algumas. Então, no final das contas, embora sejamos bastante grandes, ainda precisamos fazer escolhas estratégicas sobre onde queremos atuar.
Ter abandonado pesquisas na área de emagrecimento não foi um erro? Não acho que perdemos a onda. É apenas outra direção estratégica. O mercado de perda de peso está muito saturado e não tivemos massa crítica em nossa pesquisa para fazer a diferença. Nunca tivemos esse tratamento específico em nosso portfólio, então não foi uma perda. Se você me perguntasse, eu adoraria ter isso. Eu adoraria também ter tido uma vacina durante a pandemia. Às vezes, você precisa ter também um pouco de sorte.
Por que a Novartis saiu do mercado de vacinas? Nós desinvestimos em vacinas dois anos antes da pandemia. Éramos o segundo ou terceiro maior fabricante, mas vendemos essa unidade porque queríamos seguir por um caminho diferente, que é o de áreas de alta tecnologia. É difícil investir em vacinas, os custos são altos e os riscos, também.
O que a Novartis está fazendo para responder aos apelos dos acionistas por maior rentabilidade? Temos uma excelente posição. A área de oncologia, que é a que mais cresce, tem necessidades enormes não atendidas. Diabetes é um campo que estamos desenvolvendo, e temos um portfólio de (remédios para) doenças cardiovasculares novamente.
A Novartis vai lançar novos medicamentos no mercado brasileiro? Sim, claro. Lançamos um medicamento para câncer de próstata e queremos levá-lo para o SUS. Oferecemos para o governo: se o produto funcionar, podemos receber em parcelas. Se não funcionar, não precisa pagar. É algo novo, também estamos aprendendo com essa tecnologia.
Há alguma chance de o medicamento não funcionar? Geralmente funciona, mas o governo teria um seguro. É como comprar um carro, sair da loja e ele não funcionar. O que estamos dizendo é o seguinte: não pague agora pelo carro, pague ao longo de três anos. Se durante esses três anos o carro quebrar, você não precisa pagar.
“Eu adoraria ter uma vacina durante a pandemia. Às vezes, você precisa ter também um pouco de sorte”
A Novartis pretende aumentar os investimentos no Brasil? Sim. Às vezes, somos um pouco cínicos em relação ao governo, mas também precisamos reconhecer quando as coisas vão bem. Por exemplo, no caso do Brasil, uma das áreas em que vejo que passos positivos estão sendo dados é a de pesquisa clínica. Existem novas leis e projetos sendo aprovados.
Quanto a Novartis investe no mercado brasileiro? Atualmente, estamos investindo 90 milhões de reais em pesquisa clínica no Brasil. Globalmente, desembolsamos cerca de 9 bilhões de dólares em pesquisa. Se o governo continuar a tomar medidas para garantir que o ambiente seja favorável, a indústria certamente investirá mais. O Brasil tem uma população muito heterogênea, o que proporciona uma enorme riqueza de dados que favorecem a pesquisa clínica.
Que tipo de parceria a Novartis tem com o governo brasileiro? Há muitas doenças tropicais com que as pessoas não se preocupam mais, como hanseníase, Chagas e malária. A Novartis é uma das únicas empresas que ainda fazem pesquisa nessas áreas. Não cobramos pelo tratamento, nós o trazemos para o Brasil. E o governo está disposto a fazer parcerias nessas áreas. Além disso, somos a primeira empresa que trouxe terapia celular e terapia gênica para o Brasil.
É difícil trabalhar com o poder público? Um dos desafios é o conceito de que todos têm acesso à saúde. Ou seja, se você estiver doente, pode processar o governo por tecnologias e procedimentos. Se o juiz aprovar, você consegue o que precisa. Isso é um conceito intrigante, porque não necessariamente oferece a melhor negociação para o governo. O que me deixa confuso é por que o governo entra em uma negociação e não negocia da maneira correta. Por que o governo não é mais flexível em alguns acordos, para evitar todos esses processos? No final das contas, é mais barato para o governo, oferece melhor acesso, melhores cuidados, mais previsibilidade. Isso é algo que eu ainda não entendo completamente, mas é uma realidade no Brasil. Então eu acho que ainda há algumas ineficiências.
Quem é o principal cliente da Novartis no Brasil? Você tem o SUS, que, claro, é um sistema público, com uma grande população e menos acesso à inovação. E então você tem a medicina privada, que atende a uma população menor, para a qual, talvez, a inovação seja um pouco mais acessível.
O senhor já esteve em um hospital público no Brasil? Sim. É um mundo diferente. Você vê muito mais pacientes esperando nos corredores, é muito mais lotado, os médicos estão sob muita pressão para atender mais pacientes por hora. São muitas necessidades. Mas os profissionais que lá estão são muito competentes, mesmo em condições que não são nada fáceis.
Entre os países onde o senhor já trabalhou, quais possuem os melhores sistemas públicos de saúde? Essa é uma daquelas perguntas sobre as quais você pode ter um grande debate. São muitas abordagens diferentes. O Canadá definitivamente tem um sistema de saúde avançado. A maneira como os canadenses abordam a tecnologia, a maneira como trabalham com a tecnologia, como pensam sobre os indicadores de qualidade, é bem avançada, mas eles também têm desafios quando se trata de acesso. A diferença entre os diferentes territórios, e eles têm muitos territórios, é bastante significativa. Então, dependendo de onde você mora no Canadá, você pode ou não ter acesso a certos procedimentos ou medicamentos. Mas, sim, de forma geral, é claro que é um pouco mais desenvolvido.
Como enxerga o sistema de saúde no Brasil? Eu diria que, na América Latina, o Brasil tem um sistema de saúde privado bastante bom. Vocês têm alguns dos melhores centros, as melhores pesquisas, profissionais incríveis. O desafio está no setor público, no qual o acesso se torna um pouco mais desafiador.
“Na América Latina, o Brasil tem os melhores centros e os melhores profissionais”
Quais são os principais desafios ao trabalhar com o SUS? O sistema precisa ser mais sustentável. São cerca de 200 milhões de pessoas que utilizam de alguma forma o SUS. Outro ponto é que o Brasil é um país grande. Então, como você pode distribuir produtos por toda a geografia? Isso não é nem um pouco fácil. Há um claro mandato federal de centralização, mas existem várias outras áreas em nível estadual e até municipal, com diferentes mecanismos de financiamento, o que dificulta todo o trabalho que deve ser realizado. Acho que, devido ao tamanho do Brasil e aos mecanismos de financiamento complexos, às vezes os desafios relacionados à compreensão dos impactos fiscais tornam o ambiente regulatório e tributário bastante difícil.
Como foi feito o convite para vir ao Brasil? Foi pura coincidência. Eu já morei na Colômbia, Equador e Chile, então conheço bem os países vizinhos, mas nunca tinha trabalhado no Brasil de forma permanente. Meu chefe perguntou se eu me interessaria, e eu apenas respondi que sim. Minha esposa é colombiana, ficamos vinte anos longe de casa. Temos três filhos, uma de 17 anos e dois gêmeos de 14 anos. Trabalhar no Brasil representou uma oportunidade para que meus filhos tivessem um pouco de contato com suas raízes. O Brasil, afinal, é muito parecido com a Colômbia.
Quais são os maiores desafios do mercado brasileiro? No Brasil, você pode realmente causar um grande impacto. É um país com sérios problemas de desigualdade, mas a cultura é agradável e as pessoas são muito acolhedoras. Além disso, as oportunidades do mercado brasileiro também parecem ser grandes. É um país enorme, que precisa de pessoas e corporações que se posicionem de maneira objetiva. Somos uma dessas empresas. Meu discurso pode parecer um pouco sonhador, porque, no final das contas, somos uma organização comercial, temos acionistas e buscamos lucros. Mas, definitivamente, podemos fazer a diferença para as pessoas.
Publicado em VEJA, setembro de 2024, edição VEJA Negócios nº 6