Microcervejarias brindam a boa fase
Fabricantes evoluem no modo de atuar, livram-se dos entraves burocráticos e criam receitas dignas de celebração — inclusive as financeiras
Foi na cozinha do apartamento do publicitário Marcelo Bellintani, situado no bairro do Campo Belo, em São Paulo, que ele e um amigo, Felipe Gumiero, químico de formação, fizeram cerveja pela primeira vez — por puro hobby. Era 2009, e os dois não imaginavam que a brincadeira iria tão longe: a bebida doméstica, preparada em uma panela de 20 litros, caiu no gosto dos companheiros de copo da dupla, e o boca a boca se encarregou do resto. Depois de seis anos de operação mambembe, Bellintani e Gumiero resolveram dar o passo inicial rumo ao profissionalismo.
Para começar, desenvolveram uma marca para o seu produto: surgiu assim, em 2015, a Juan Caloto. A partir daí, o negócio deslanchou. Pressionada pela falta de espaço para ser fabricada, a Juan Caloto virou cigana. Explica-se: cervejarias ciganas são aquelas que não têm maquinário próprio para produzir e fermentar a bebida, e por isso alugam o equipamento das concorrentes maiores. Gumiero e Bellintani passaram a usar a estrutura da Blondine, em Itupeva (SP), para chegar a 1 400 litros por mês, os quais escoavam em três pontos de venda. O sucesso só fez crescer a iniciativa — e, consequentemente, o trabalho para cuidar da empresa. Os amigos decidiram então abandonar os respectivos empregos. Não adiantou. Ao perceberem que mesmo largando a carreira original não davam conta de administrar o empreendimento sozinhos, eles radicalizaram no “ciganismo”: terceirizaram todo o trabalho burocrático da companhia. “Esse modelo nos permite focar o core do negócio, que são o desenvolvimento de outras variedades de cerveja e a gestão da marca”, explica Bellintani.
A dupla da Juan Caloto não está sozinha nessa escolha. Segundo a Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva), o país conta hoje com 889 cervejarias tradicionais, enquanto as ciganas já somam mais de 2 000. Num mercado em transformação, no qual os gigantes do setor têm perdido espaço para as cervejas artesanais, até a Ambev abriu as portas para essa nova concorrência. A multinacional disponibiliza, desde abril, a fábrica da Bohemia, em Petrópolis (RJ), para parcerias com tal tipo de cervejeiros. A condição de nômade beneficia as duas pontas. Por um lado, o modelo permite que pequenos empreendedores testem seus produtos com um investimento inicial baixo e uma tributação mais leve, por causa da ausência de maquinário. Por outro, as grandes marcas lucram com o aluguel e reduzem a ociosidade de suas unidades fabris. O avanço do ciganismo no setor, com a transferência das etapas industriais e comerciais do processo para empresas especializadas — o que envolve a compra de insumos, pagamento de impostos, distribuição etc. —, livrou os nômades das dores de cabeça que as cervejas e os negócios ruins provocam. Isso sem tirar deles a parte mais saborosa: testar novas receitas e, sobretudo, receber os royalties, que giram em torno de 1 a 2,50 reais de cada garrafa vendida (ou de 16 000 a 50 000 reais por mês, em uma conta aproximada).
Não é fácil, porém, chegar à hora do brinde. Os altos impostos e os custos de produção elevam o preço das nômades, restringindo o público e dificultando a competição com as marcas campeãs. Murilo Foltran, sócio da Dum Cervejaria, que terceiriza produção e burocracias para a GaudenBier (ambas situadas em Curitiba), alerta sobre a “concorrência desleal” que as pequenas produtoras enfrentam na guerra contra os gigantes. “As cervejarias artesanais não têm incentivos fiscais e nem sequer podem renegociar dívidas.” Ciente dessas pedras no caminho, a paulista StartUp Brewing oferece consultoria para auxiliar em questões financeiras, de marketing e até mesmo relacionadas à fórmula das cervejas. “Orientações como a redução de gramas de lúpulo por litro podem diminuir custos sem afetar o sabor da bebida”, afirma André Franken, CEO da Brewing.
Para os consumidores contumazes de cerveja que sonham em, por assim dizer, passar para o outro lado do balcão, vale um lembrete: a fim de evitarem problemas com aventureiros irresponsáveis, as companhias de apoio às ciganas só aceitam parceria com marcas já minimamente consolidadas. Dito de outra forma: o percurso se anuncia longo. Mas, para começar, pode não ser má ideia arranjar uma panela de 20 litros.
Publicado em VEJA de 28 de agosto de 2019, edição nº 2649