No espaço de poucos dias, dois indicadores mostraram sinais contraditórios a respeito dos rumos da economia brasileira. O primeiro deles tratou da arrecadação federal. Nos dois primeiros meses do ano, ela somou 469 bilhões de reais, o melhor desempenho para o período desde o início da série histórica, em 1995. Como era de esperar, o governo comemorou o resultado, atribuindo o número positivo ao mercado de trabalho aquecido e a medidas extraordinárias, como a taxação sobre fundos de investimentos exclusivos dos ricos. Na sequência, contudo, a realidade bateu à porta do país: em fevereiro, o déficit federal — ou seja, quanto o governo gastou a mais do que arrecadou — foi de 58 bilhões de reais, o que também significou um recorde, mas na direção oposta. Foi o pior número já registrado para o mês. Portanto, contrariamente ao que o governo tem defendido, o jogo econômico não está ganho. Muito longe disso.
As projeções para o restante do ano são preocupantes. Os gastos fixos, como os da Previdência, estão crescendo acima do esperado, conforme revelado pela avaliação bimestral do Orçamento feita pela equipe econômica. Além disso, a expectativa agora é de que a arrecadação encerre 2024 com 31,5 bilhões de reais a menos do que o estimado no final do ano passado pela Lei Orçamentária Anual. Com isso, a projeção de superávit de 9,1 bilhões de reais nas contas públicas em 2024 foi revisada para um déficit de 9,3 bilhões de reais, o equivalente a 0,1% do PIB. Por trás da piora estão frustrações em algumas das apostas do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aumentar a arrecadação, como o fim dos benefícios tributários concedidos aos juros sobre capital próprio das empresas. “A arrecadação está melhor do que no ano passado, mas pior do que o governo esperava”, afirma Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado. “Por isso, só o crescimento das receitas pode não ser o suficiente para atingir a meta fixada.”
O déficit de 0,1% do PIB ainda estaria com alguma folga dentro da meta fiscal do ano, que é de déficit zero, mas com uma tolerância de 0,25% do PIB para mais ou para menos, o que daria uma margem extra de quase 29 bilhões de reais para os gastos. Fora do governo, contudo, economistas não acreditam que isso possa ocorrer. As projeções são de um déficit entre 0,6% e 0,9% do PIB em 2024, o que significaria pelo menos 70 bilhões de reais no vermelho. “O governo aumentou os gastos e corta pouca gordura, enquanto as receitas que projeta estão superestimadas”, diz Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da gestora Ryo Asset.
Uma justa preocupação do mercado financeiro envolve a eventual mudança da meta fiscal por parte do governo. Algo desse tipo quebraria a confiança no país e certamente afastaria investidores. O fantasma apareceu em meio às críticas recorrentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à austeridade fiscal. “Seria uma volta à sistemática dos anos 90, antes da Lei de Responsabilidade Fiscal, quando não havia nenhum compromisso com o que era anunciado”, diz Carlos Kawall, sócio da gestora Oriz Partners e ex-secretário do Tesouro Nacional.
Algumas vozes relevantes em Brasília estão preocupadas com o desequilíbrio fiscal do país. Em audiência na Câmara, Robinson Barreirinhas, secretário da Receita Federal, afirmou que o otimismo é “um retrato do momento”, mas ressaltou que o governo terá problemas se não forem aprovadas as medidas compensatórias discutidas pelo Congresso. Entre elas, citou a reestruturação do Perse — o programa de socorro ao setor de eventos — como indispensável. Se for mantido do jeito que está, o Perse terá um impacto de 14 bilhões de reais nas contas públicas em 2024. A ministra do Planejamento, Simone Tebet, compartilha da mesma preocupação. Segundo ela, o relatório do Orçamento trabalha com os dados disponíveis no momento. E, por isso, deverá passar por revisão nos próximos meses, a depender do que for aprovado pelo Congresso. “Nós mesmos estamos alertando que poderá haver despesas muito maiores”, disse a ministra Tebet.
Há inúmeros desafios pela frente. A disposição do governo para gastar sem freios parece ser um problema incontornável, porque se trata de uma visão econômica enraizada no receituário petista. Lula, por exemplo, defende reajustes do salário mínimo acima da inflação, e isso deverá sobrecarregar as contas públicas. “O aumento do salário mínimo vai pressionar a Previdência, que já é objeto de preocupação”, diz Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil do UBS Global Wealth Management. “Especialmente em anos eleitorais como 2024, há uma dificuldade adicional de promover contingenciamentos que podem ser necessários.” Sem contingenciamento, palavra que causa calafrios no núcleo duro do governo, uma alternativa para respeitar o arcabouço fiscal seria alterar a meta de resultado primário das contas, ideia que o Ministério da Fazenda constantemente repele. Se a previsão oficial para este ano é de zerar o déficit primário, para 2025 fala-se em obter superávit de 0,5% do PIB. “É cedo para tratar dessa mudança, mas é uma meta impraticável”, diz Felipe Salto, economista-chefe da gestora Warren Investimentos.
O governo está diante de um dilema. Se alterar a meta fiscal, a credibilidade do arcabouço desenhado no início da gestão de Haddad à frente do Ministério da Fazenda ficará comprometida. Se não mudar a meta, provavelmente não cumprirá o que havia sido prometido e, portanto, mais uma vez ficará comprovado que os governos do PT se atrapalham para administrar com rigor as contas públicas. Além disso, o governo seria punido em 2025 com aperto de orçamento conforme prevê o arcabouço, algo que Lula quer evitar a todo custo. A outra saída seria voluntariamente ceifar gastos — mas isso não está no horizonte da administração petista. Ao país, resta torcer para que o crescimento econômico salve as contas.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886