O velho mito é conhecidíssimo. Dédalo, um habilidoso artífice da Grécia Antiga, construiu asas de cera para si mesmo e para o filho Ícaro, o que lhes deu a habilidade de voar. No entanto, Ícaro subiu alto demais e a engenhoca derreteu com o calor do sol. Desde que assumiu a Presidência dos Estados Unidos, em janeiro de 2021, o democrata Joe Biden tem se apoiado na arriscada política de aumento dos gastos públicos como forma de acelerar o crescimento. O problema é que as despesas voaram para além dos limites aceitáveis e agora o país enfrenta níveis de endividamento sem precedentes. Sua dívida pública supera a casa dos 33 trilhões de dólares — é o maior valor da história americana —, e não há sinais de que vai recuar. “Não é um cenário de insolvência, mas a situação preocupa por mostrar uma tendência de alta na trajetória da dívida”, diz Alberto Ramos, diretor de pesquisa macroeconômica do banco americano Goldman Sachs. O Brasil, registre-se, já viu e continua vendo esse filme, e o resultado costuma ser sempre ruim.
Como manda a cartilha do Partido Democrata, Biden não tem sido cioso com os gastos públicos em seu mandato. Logo que assumiu a Presidência, lançou o American Rescue Plan, um pacote colossal de 1,9 trilhão de dólares para estimular a economia e combater os efeitos danosos da pandemia de Covid-19. Em seguida, anunciou outra pancada no Tesouro: 550 bilhões de dólares para um pacote de obras como construção e reforma de rodovias e redes de internet. Além disso, o governo introduziu o Inflation Reduction Act, um plano de dez anos que inclui descontos de energia e créditos fiscais para acelerar a transição energética, com impacto esperado de 430 bilhões de dólares nas contas públicas. A mais recente iniciativa da lista é o Chips Act, projeto que busca incentivar a instalação de empresas de tecnologia de ponta ao custo de 280 bilhões de dólares.
O “Bidenomics”, expressão que passou a circular nos Estados Unidos, assemelha-se em diversos aspectos ao receituário petista, e por aqui a história ensina que o modelo pode até levar ao crescimento econômico por breves períodos, mas seus efeitos no longo prazo são desastrosos. “É a ideia de que o investimento público se paga, mas o problema é que a dinâmica do endividamento muda”, afirma Tony Volpon, ex-diretor do Banco Central do Brasil e atualmente professor da Universidade Georgetown, nos Estados Unidos. De fato, a lógica é perversa. O rombo vem aumentando em ritmo veloz — cresceu 1 trilhão de dólares em menos de quatro meses. Em ano eleitoral como 2024, a estratégia tende a ser turbinada, já que despejar dinheiro público costuma ser um bom meio de angariar votos. O Brasil conhece bem esse mecanismo, usado costumeiramente por governantes de diferentes matizes ideológicos.
Embora Biden tenha grande culpa no cartório, é importante dizer que a ascensão da dívida americana também se deve, em alguma medida, ao ex-presidente Donald Trump, do Partido Republicano. Em 2017, Trump lançou o maior pacote de corte de impostos da história dos Estados Unidos, o que não deixa de ser louvável. Entretanto, ele não buscou outros meios de equilibrar as contas públicas, sendo o mais recomendável deles o controle rigoroso de gastos. Longe disso. Sua gestão foi marcada por reforços no Departamento de Defesa, que teve seu orçamento elevado para recordistas 740 bilhões de dólares. No final, a reforma trumpista resultou, apenas ela, em um rombo de 1,4 trilhão de dólares nos cofres do país.
O caso americano é preocupante. Sua dívida pública equivale atualmente a 120% do produto interno bruto. O número já foi maior — chegou a 122,6% em 2020, no auge da pandemia de Covid-19. À exceção desse período dramático, o porcentual nunca foi tão alto. Em 2019, antes de a crise sanitária chegar, a relação estava em 104,5%. Para efeito de comparação, o endividamento brasileiro equivale a 74% do PIB. Somam-se à escalada da dívida americana o aumento dos juros e a inflação. Ainda que o Federal Reserve (Fed) tenha prometido começar a baixar a taxa básica de juros no início deste ano, é consenso no mercado que a fase do “dinheiro de graça” ficou para trás. Ou seja: até pouco tempo atrás, os Estados Unidos contratavam dívida e compensavam o aumento emitindo moeda. Agora, isso está bem mais caro.
Não à toa, a agência de classificação de risco Moody’s revisou no fim do ano passado a nota de crédito dos Estados Unidos de “estável” para “negativa”, citando grandes déficits fiscais e um declínio na capacidade de pagamento. Outra agência de risco, a Fitch, também rebaixou o rating soberano do país. Ainda assim, especialistas dizem que não há perigo de calote — os Estados Unidos jamais deixaram de honrar seus compromissos financeiros. “Temos sinais de estresse no sistema, mas calote é inimaginável”, diz o economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central. “Seria traumático e uma tremenda irresponsabilidade.”
Embora a situação preocupe, não é recomendável “apostar contra a economia americana”, para usar uma frase consagrada pelo megainvestidor Warren Buffett. Ao longo da história, a economia dos Estados Unidos provou ser capaz de resistir a tudo, sejam guerras, crises imobiliárias ou pandemias. O PIB pode até recuar por períodos isolados, mas depois inevitavelmente se recupera. O cenário atual comprova a teoria. No início de 2023, não foram poucos os economistas que afirmaram haver risco de recessão nos Estados Unidos, mas ela não veio, e certamente não surgirá tão cedo.
Conforme dados do fim de dezembro, o PIB americano cresceu 4,9% de julho a setembro de 2023 em termos anualizados, bem acima das expectativas do mercado. Nesse contexto, ganhou força a teoria do soft landing, ou pouso suave, segundo a qual a economia se recupera de crises sem sobressaltos. O mercado de trabalho é um exemplo concreto do extraordinário vigor do país. Mês após mês, o payroll, como é chamado o indicador de emprego nos Estados Unidos, surpreende, aniquilando as apostas de que a economia estaria perdendo fôlego. Apenas em dezembro, o país criou 216 000 vagas fora do setor agrícola, bem acima das projeções. Ainda assim, a gastança desenfreada da gestão Biden deve exigir ajustes e dar trabalho para o próximo presidente — seja ele quem for.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876