Para quem chegou aos 60, parece que foi ontem que os jovens, rapazes principalmente, mal alcançavam a idade de dirigir e corriam para tirar carteira de motorista, sonhando com o primeiro carango (gíria também das antigas). Ter carro era sinônimo de liberdade e ferramenta de sedução — o garoto motorizado já saía com vantagem na hora da conquista. Pois esse rito de passagem para a vida adulta caiu em desuso. Tanto os millennials quanto a geração que vem depois deles, os Zs, gente nascida após 1980, torcem o nariz para o carro, em geral, e o próprio, em particular. A atitude combina com sua visão de mundo, na qual se privilegiam experiências em vez de bens materiais e se coloca a proteção do meio ambiente acima de tudo.
Prova cabal do desinteresse da juventude brasileira pelo volante é a queda de mais de meio milhão no número de carteiras de habilitação emitidas para pessoas entre 18 e 30 anos em julho passado, em comparação com o mesmo mês de 2018. Acompanhando esse refluxo, os novos licenciamentos de veículos encolheram em 650 000 unidades entre 2019 e o ano passado, afetando as vendas em um mercado com faturamento médio anual de quase 300 bilhões de reais.
Os jovens de hoje, quando olham para um automóvel, pensam no preço da gasolina, seguro, estacionamento e manutenção, dinheiro que poderiam aproveitar melhor em lazer, viagens e estudos. “Consigo ir a qualquer lugar sem carro e não tenho nem tempo de tirar carteira de habilitação. Para mim, não é prioridade”, garante Kourosh Naghibi, 21 anos, estudante de Vitória da Conquista, na Bahia. “Trata-se de um objeto grande demais para ser carregado na experiência cotidiana. Não tem nada a ver com a fluidez desejada pelas novas gerações”, elabora Bernardo Conde, professor de antropologia da PUC-Rio. Especialistas explicam que o desdém por possuir coisas é reforçado no mundo moderno pelo sucesso dos negócios virtuais, onde a Amazon não acumula estoques, o Uber não possui um só veículo e o Airbnb passa longe do título de propriedade dos imóveis que aluga.
Outro componente primordial na dispensa do carro próprio é a preocupação com o impacto ambiental da queima de combustível fóssil. Estudo realizado pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) mostrou que os veículos são responsáveis por 72% das emissões de gases em São Paulo, notoriamente uma das metrópoles mais congestionadas — e poluídas — do planeta. Para as novas gerações, compactuar com isso é inaceitável: em pesquisa da consultoria Deloitte, o aquecimento global aparece em primeiríssimo lugar na lista de preocupações de quem está na faixa dos 18 aos 26 anos. “Ter carro não compensa mais”, decreta Caio Carvalho, 25 anos, estudante de educação física de Niterói que, como tantos de sua faixa etária, passou a fazer seus trajetos de bicicleta. Para Geovani Fagundes, especialista em finanças da consultoria PwC Brasil, a sobrevivência das montadoras depende de sua adesão ao carro elétrico. “Dirigir um veículo com motor de combustão vai ser motivo de vergonha futuramente”, afirma. Nas grandes cidades, sustentabilidade se alia a praticidade na hora de se locomover. “Moro e trabalho ao lado de estações de metrô exatamente para perder menos tempo em deslocamentos”, diz o designer Klaus Simões, 25 anos, de São Paulo.
Ciente de que os tempos são outros, o setor automobilístico investe na diversificação de negócios. Mercedes-Benz, BMW e Porsche são algumas das marcas de luxo que decidiram percorrer a pista limpa e silenciosa das bicicletas elétricas. De acordo com Evandro Bastos, gerente de produto da Mercedes, o objetivo é atender à necessidade de deslocamento das pessoas sem degradar o meio ambiente — e, de quebra, fidelizar os cobiçados consumidores jovens. A General Motors, por sua vez, aposta que os carros continuarão relevantes, mas os combustíveis à base de petróleo têm os dias contados. “A tendência à mudança já atinge, inclusive, quem tem mais de 35 anos”, observa Hermann Mahnke, diretor-executivo de marketing da GM para a América do Sul. Uma alternativa que começa a se popularizar, sobretudo entre os jovens, são os serviços de assinatura — a pessoa escolhe um carro zero na locadora e, mediante pagamento mensal, pode usá-lo e devolver na hora que quiser, pelo prazo do contrato. “A estabilidade já não tem mais tanto valor, o que pode ser muito saudável”, afirma a psicóloga Lidia Aratangy, da USP. Livre de amarras, a juventude segue — a pé — em outra direção.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757