Às vésperas da Olimpíada do Rio, o então governador Francisco Dornelles decretou estado de calamidade pública devido à grave crise econômica, citando fatores como “severas dificuldades na prestação de serviços essenciais” e a possibilidade de um “total colapso na segurança pública, na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental”. O governo federal veio em socorro, mas até hoje há dificuldades enormes para pagar salários de médicos, policiais e servidores. Na infraestrutura, o estado enfrenta problemas graves. Um exemplo disso é a Linha 4 do metrô. Nos preparativos da capital fluminense para os Jogos de 2016, foi anunciada a construção do sistema. O dinheiro acabou antes de a obra ficar pronta, e a estação da Gávea, já em estágio avançado de construção, acabou abandonada. Três anos se passaram e a obra continua parada. Pior: especialistas afirmam agora que ela está condenada e suas estruturas correm o risco de desabar.
É tentador atribuir tamanha crise à corrupção de seus políticos — cinco de seus últimos governadores, afinal, foram ou ainda estão presos —, mas há outras razões importantes a levar em conta. Uma delas, sem dúvida, é o destino que se dá, dentro das leis, ao dinheiro público: 28,4% da receita do Rio é usada para pagar aposentadorias e pensões do funcionalismo público. Nesse campo, o sufoco se repete em vários outros estados e municípios (veja quadros ao longo da matéria). “Na média nacional, cerca de 20% da receita líquida dos estados é destinada exclusivamente para cobrir o déficit previdenciário. Ou seja, quem paga imposto não tem retorno em serviços públicos, pois precisa ficar pagando custosas folhas de salários de servidores, aposentadorias e pensões”, diz o economista Paulo Tafner, autor do livro Reforma da Previdência: por que o Brasil Não Pode Esperar. “Nessa situação, não sobra dinheiro para investimentos.” O déficit financeiro dos entes federativos, no que diz respeito apenas às aposentadorias de servidores públicos, sujeitos aos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), em 2017, foi de aproximadamente 92 bilhões de reais.
Por incrível que pareça, há casos ainda mais graves que o do governo fluminense. Em termos proporcionais, o Rio Grande do Sul é o campeão nacional de gastos, com mais de 60% de sua receita consumida para honrar as pensões. Empreiteiras já interromperam construções e duplicações de estradas por falta de pagamento. No Rio Grande do Norte, policiais militares entraram em greve por falta de pagamento em 2017, o que obrigou o governo federal a enviar a Força Nacional para conter a onda de crimes no estado. Em fevereiro de 2019, foi a vez de médicos e enfermeiros cruzarem os braços para exigir o recebimento dos salários atrasados desde dezembro, 13º inclusive. Mesmo São Paulo, que tem finanças em situação menos ruim que a média nacional, recorre a manobras contábeis desde 2011 para destinar recursos que, por lei, deveriam ser alocados à educação para pagar aposentadorias. Segundo o Ministério Público de Contas, foram quase 8 bilhões de reais “desviados” no ano passado (há uma discussão na Justiça sobre a legalidade do negócio).
Diante da gravidade da situação, o Ministério da Economia incluiu estados, o Distrito Federal e municípios na reforma da Previdência em discussão no Congresso, numa tentativa de baixar gastos e ajudá-los a equilibrar as contas. A contabilidade eleitoral rasteira levou boa parte dos governadores e prefeitos a ficar em silêncio, sobretudo no Nordeste. O benefício de não se manifestar é grande. Com a reforma, ganha-se no orçamento uma necessária folga para investir em saúde, educação e segurança pública, que rendem votos junto ao eleitorado, e o desgaste com a população por mexer nas regras da aposentadoria fica na conta de senadores e deputados. Como reação a esse movimento (ou falta de movimento, no caso), o relator da reforma da Previdência, deputado Samuel Moreira, retirou os estados e municípios da PEC no melhor estilo Pôncio Pilatos: lavou as mãos e jogou a batata quente de volta para as mãos de governadores e prefeitos. O jogo ficou mais tenso e com resultado imprevisível.
Em linhas gerais, o rombo na Previdência apresenta alguns fatores que são comuns a todos os regimes. Com maior acesso a saúde e informação, as mulheres tendem a engravidar mais tarde e ter menos filhos, o que leva ao declínio da taxa de fecundidade. Houve também um aumento na expectativa de vida dos brasileiros. Esses dois elementos contribuem para o alargamento da razão de dependência, que é a relação entre o número de servidores ativos e o de inativos, incluídos os aposentados e pensionistas.
De acordo com estudo elaborado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), entre os anos de 2006 e 2015 o número de servidores estaduais inativos cresceu 37,9%, enquanto o número de ativos caiu 3,4%. Além disso, o valor do benefício médio pago aos inativos elevou-se em um terço, devido ao aumento que aposentados recebem sempre que os servidores da ativa têm reajuste. O sistema generoso permite que servidores se aposentem antes dos 60 anos. Com isso, em Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul o número de inativos já supera o de ativos. Por fim, há ainda que considerar a existência de categorias que garantem regras vantajosas aos segurados estaduais, especialmente os professores e os policiais, que têm direito a aposentadoria precoce e benefícios em valor próximo ao da remuneração do servidor na ativa. “Os municípios ainda não estão na mesma penúria dos estados, mas sua pirâmide etária também vai se inverter e as prefeituras correm o mesmo risco de quebrar”, afirma a economista Ana Carla Abrão. Não há exagero algum nessa sentença. O que está ruim fatalmente vai piorar, caso a turma continue fora do projeto. Cada um terá de fazer sua própria reforma: serão 27 discussões em assembleias estaduais, e outras 2 100 batalhas em câmaras de vereadores para alterar os regimes próprios de previdência dos municípios. Ou seja, uma discussão sem fim em um momento que exige ajustes urgentes.
Se aprovada em sua forma original, a PEC proposta pelo governo causaria impactos positivos em todo o país. Em dez anos, a economia seria de 350,7 bilhões de reais nos estados, de acordo com a IFI. No mesmo tempo, os municípios poupariam 170,4 bilhões e o déficit atuarial dos RPPS municipais cairia de 1,03 trilhão de reais para 676,5 bilhões, uma queda de cerca de 35%, de acordo com a Secretaria da Previdência. Desafogar a Previdência significa abrir espaço para flexibilizar o orçamento e investir nas áreas mais importantes para a população, que são a educação, a saúde, a infraestrutura e a segurança pública. “O impacto da reforma não é só a longo prazo. Já no ano que vem começa a surtir efeito, com uma economia de 33 bilhões de reais ao ano”, aponta o consultor econômico Raul Velloso.
No último dia 26, foram encerrados os debates sobre a reforma na Comissão Especial. A leitura do voto complementar apresentado pelo relator Samuel Moreira (PSDB-SP), no entanto, acabou sendo adiada. O atraso foi estratégico para que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tivesse mais tempo para finalmente convencer os políticos a apoiar o retorno dos estados e municípios ao projeto. Expectativas otimistas preveem que a votação na comissão se inicie na próxima segunda-feira, dia 1º, e seja encerrada de forma breve, com o objetivo de que a proposta seja votada no plenário da Câmara antes do recesso de julho, que começa no dia 18.
Governadores e prefeitos devem mostrar apoio público e vigoroso ao relator da reforma, Samuel Moreira, para que a inclusão dos estados e municípios na reforma da Previdência seja feita ainda na Comissão Especial. Nas últimas semanas, governadores como Rui Costa, da Bahia, vêm fazendo pressão para que a reforma seja suavizada (e assim eles ganhem pontos com eleitores) em troca de apoio ao projeto. Romeu Zema, governador de Minas, já se rendeu à realidade. “Está na hora de ter coragem para tomar medidas impopulares e garantir o futuro do Brasil”, diz ele, à frente da administração de um estado com dificuldade para repor o estoque de remédios nos postos de saúde e farmácias populares por falta de pagamento aos laboratórios. É tempo de arregaçar as mangas, e não de lavar as mãos.
Publicado em VEJA de 3 de julho de 2019, edição nº 2641
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