Alexandra Baldeh Loras, ex-consulesa da França no Brasil e uma das vozes mais ativas no combate ao racismo no país, estava cansada dos fóruns empresariais que pregavam diversidade e inclusão social. Para ela, esses eventos não passavam de um grande jogo de cena no qual brancos falavam para brancos e que não surtiam nenhum efeito – o racismo ficava oculto por uma suposta consciência social. Por isso, criou o Fórum Diversifique, com palestrantes negros que falam para negros.
A primeira edição foi realizada nesta semana, em São Paulo. Entre os painéis, os temas diversidade, inclusão e “afroconsumo” estavam presentes. Ela diz que o evento serviu para criar uma curadoria entre líderes negros, oferecendo a visão deles ao mercado.
VEJA conversou com a ativista, que falou sobre empreendedorismo, empoderamento, barreiras raciais. Essas últimas, em sua visão, têm impedido o sucesso dos negros no Brasil. Falou também sobre a eleição de Jair Bolsonaro.
Capitalismo x Racismo
Uma das maiores dúvidas internas de Loras é por que as empresas brasileiras continuam a ignorar a população negra no desenvolvimento de seus produtos e em suas campanhas publicitárias. Nas contas de Loras, são 114 milhões de pessoas negras no Brasil e que consomem 1,5 trilhão de reais – mais do que a classe A (fatia da população cuja renda familiar supera 12 mil reais).
“As empresas brasileiras preferem o racismo ao capitalismo”, afirma Loras, com acentuado sotaque francês. A mensagem forte é embasada em uma visão própria de que as companhias ignoram 54% da população brasileira em seus produtos e campanhas publicitárias. “A família de margarina não pode ser negra? Os negros compram margarina, arroz e feijão, pasta de dente, absorvente. Os negros consomem mais do que a classe A”, sentencia.
Na noite de segunda-feira 26, a Perdigão, uma das marcas de alimentos da BRF, publicou um anúncio que tirou muita gente do sério. A peça produzida para o Natal afirma que a empresa doará um segundo chester (aquele frango de peito grande) para uma família carente a cada um vendido. No vídeo (que pode ser visto aqui), uma família branca discute durante a ceia de Natal sua própria generosidade ao comprar a ave congelada, enquanto uma outra, negra, agradece a doação recebida. “Essa propaganda inferioriza as famílias negras. É assustador”, diz Loras.
A Perdigão diz lamentar que a campanha publicitária tenha ofendido seus consumidores. “Nunca foi essa a nossa intenção.” Segunda a empresa, falar de generosidade é uma forma de união e agradecimento a todos os consumidores, que há três anos colaboram para o Natal de mais de 6 milhões de pessoas, independente de cor, gênero, raça ou religião. “É nisso que acreditamos”, afirmou a Perdigão, em nota. O vídeo permanece no ar.
Loiros
Por trás de peças publicitárias como essa, a ativista acredita existir um encantamento do brasileiro por pessoas brancas e loiras – distante do biotipo nacional padrão. “O Brasil quer ser loiro”, diz ela. “Conte em um dia a quantidade de loiras que você vê em São Paulo?”, afirma. “Isso está na publicidade, na novela, na elite. Não é uma coisa tão forte quanto na Alemanha e em outros lugares da Europa, mas sobrevive a narrativa da superioridade do loiro. O Brasil tem uma fascinação pelo ariano.”
Esse é um dos motivos que a fazem dizer que o Brasil é o país mais racista do mundo. Essa cultura do racismo velado – “um crime dantesco” -, impede que negros ascendam à política, ocupem espaços valorizados pela sociedade, como um escritório de alto padrão na Avenida Faria Lima ou um gabinete no Congresso Nacional. “Existe um apartheid cordial, que faz com que as pessoas não questionem sequer o uniforme branco da babá. Isso vem da escravidão, quando a mulher negra da casa-grande usava branco para se diferenciar do negro trabalhando no campo.”
Empreendedorismo
Para a ex-consulesa, tudo é mais difícil no Brasil para o negro – desde captar clientes a conseguir crédito. O estereótipo de doméstica, faxineira ou traficante de drogas limita a forma como recrutadores, possíveis clientes e até bancos enxergam essas pessoas. “A maior parte dos empreendedores é de negros. E isso acontece porque as empresas não os contratam. Elas falam que não acham negros capacitados. Então, eles têm que se tornar empreendedores”, diz.
Ela completa o cenário ao contar a dificuldade para receber apoio de instituições financeiras para bancar os negócios abertos por negros. “O que assusta é que eles não conseguem crédito no banco porque o banco não empresta dinheiro para negros. Eles não atingem os parâmetros necessários. É muito difícil.”
As dificuldades de o negro acessar o mercado de trabalho são muitas, afirma. Não que seja falta de capacidade. Enquanto indicadores apontam que três entre cada dez brasileiros são analfabetos funcionais, esse não é o maior problema da comunidade negra no país e nem dos que vivem em comunidades carentes. “Se não sabe onde contratar negros capacitados, procure a gente, nossa consultoria, pois já ajudamos a contratar 458 negros. Fizemos um trabalho melhor do que qualquer agência de recursos humanos no país.”
A consultoria citada por Loras é o aplicativo Protagonizo, que conecta empresas a candidatos. O aplicativo suspendeu suas operações em outubro deste ano, após pouco mais de um ano online. O diretor Anderson Carvalho alegou falta de investimentos.
Carnaval e violência
Residente no Brasil desde 2012, quando veio acompanhar o marido, Damien Loras, nomeado cônsul da França em São Paulo, ela adora o carnaval brasileiro. Um dos motivos é que a festa é organizada a partir de comunidades carentes. Ele enxerga na produção desse evento, exportado para mais de 50 países, uma prova irrefutável da capacidade empreendedora dos negros, mesmo os oriundos de redutos onde tráfico e violência dominam o cotidiano. “O negro coloca o carnaval dentro da economia”, afirma.
Se o negro não é capacitado, por que dá certo o desfile de uma escola de samba com 4 mil pessoas?
Alexandra Loras, ex-consulesa da França e ativista do movimento negro
Bolsonaro
Não é difícil supor que Loras não é a melhor amiga do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). No entanto, surpreendem suas ideias sobre a eleição do capitão reformado, que comparou quilombolas a gado, ao sugerir que o peso deles era medido em arrobas. “Se o Bolsonaro me chama para trabalhar, iria muito feliz”, diz ela. “Não é porque não votei nele que vou ignorá-lo. É a realidade que vivemos agora.”
Para ela, foi um avanço a eleição do militar. Ao escolher Bolsonaro, ela diz que o Brasil finalmente aceitou seus preconceitos que, enquanto estavam velados, mantinham uma segregação social. “O Brasil está mostrando a sua cara. Com Bolsonaro na Presidência, o Brasil finalmente vai se olhar no espelho”, acredita.
Além disso, depois de mais de treze anos do PT no comando do país, partido que encampou uma campanha pela tolerância e diversidade nas últimas eleições, pouco foi feito para mudar esse quadro. À exceção da PEC das Domésticas, em 2012, o que Loras chama de verdadeira abolição da escravatura, o PT não produziu uma ascensão social do negro – quiçá uma financeira. “Tirou milhões de famílias da extrema pobreza e as deixou na pobreza novamente.”
Sua narrativa pode incomodar muitos ativistas sociais. Ela, que é amiga de pessoas da mais alta sociedade brasileira, como a princesa Paola Maria de Bourbon Orléans e Bragança, com quem posou para a revista Vogue, em 2016, diz estar incomodada com a cantilena desses movimentos.
“Fico um pouco brava com movimentos de negros que são contra a direita. O racismo não é questão de esquerda ou de direita. O lugar do negro é onde ele quiser.”