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Deterioração dos serviços e omissão: os erros por trás do apagão em SP

Uma concessionária de energia, a Enel, de olho em mais lucros. Agência reguladora e ministério ausentes. A culpa do colapso não é da privatização em si

Por Márcio Juliboni, Juliana Elias, Camila Barros Atualizado em 18 out 2024, 11h41 - Publicado em 18 out 2024, 06h00
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  • Uma das ideias mais populares da teoria do caos, ramo da física que estuda movimentos aleatórios, é o efeito borboleta. Proposto em 1961 pelo meteorologista americano Edward Lorenz para descrever como pequenos eventos geram grandes consequências, o conceito foi resumido na famosa imagem em que o bater de asas do inseto provoca uma tempestade do outro lado do mundo. Nunca saberemos qual borboleta causou os ventos de mais de 100 quilômetros por hora que fustigaram a cidade de São Paulo na sexta-feira 11 e derrubaram pelo menos 386 árvores. Bem mais fácil é identificar os responsáveis pelo caos na capital paulista após o vendaval que deixou 3,1 milhões de imóveis sem energia — mais do que o 1,3 milhão de domicílios na mesma situação após o furacão Milton passar pela Flórida, nos Estados Unidos. Da Enel, a concessionária que atende os paulistanos, à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), passando pelo Ministério de Minas e Energia e outros níveis de governo, ninguém escapa. “Não há inocentes nessa história”, diz Claudio Frischtak, presidente da Inter.B, consultoria especializada em projetos de infraestrutura.

    A responsável mais óbvia pelo apagão que causou quase 2 bilhões de reais de prejuízos é a Enel. Em 2018, a empresa pagou 5,6 bilhões de reais à americana AES pela Eletropaulo, distribuidora de energia para a capital e mais 23 municípios paulistas, privatizada em 1998. O negócio a transformou na maior companhia do setor, com operações em 500 cidades brasileiras e receitas, na época, de 30 bilhões de reais. Por outro lado, sua dívida líquida saltou de 5,2 bilhões para 20 bilhões de reais em 2018. A própria Eletropaulo, rebatizada como Enel São Paulo, era deficitária e fechou aquele ano com prejuízo de 844 milhões. Reverter as perdas era vital para obter o retorno esperado até 2028, quando vence a concessão. A primeira providência foi cortar pessoal. Não há detalhes da operação paulista, mas a Enel Brasil reduziu o quadro de 53 000 funcionários, incluindo próprios e terceirizados, para 46 000 entre 2019 e 2023. A ala financeira também pressionou a ala operacional a se desfazer do estoque de peças e equipamentos. “Vendíamos o material para outras concessionárias e ficávamos sem atender a emergências”, diz um ex-executivo da Enel que pediu anonimato. “Isso continua até hoje.”

    TESOURA - Lencastre, presidente da Enel: cortar gastos piorou a manutenção
    TESOURA - Lencastre, presidente da Enel: cortar gastos piorou a manutenção (Gabriel Justo/Folhapress/.)

    O próprio modelo de reajuste tarifário incentiva a Enel a economizar com manutenção, já que remunera melhor investimentos feitos na ampliação da rede. Isso reflete os interesses do governo na virada do século, quando o foco era a universalização do serviço e as mudanças climáticas não estavam na pauta. “É preciso adequar os contratos aos novos tempos”, diz uma ex-diretora da Enel. “Mas quem pagará pelas medidas de mitigação dos riscos climáticos?” A resposta: os consumidores, e isso não precisaria pesar mais no bolso. Bastaria que o Congresso retirasse os penduricalhos que encarecem a conta de luz, como os subsídios que representam 12,5% da tarifa. Gerar o máximo de lucro ajuda, ainda, a matriz da Enel na Itália a resolver seus próprios problemas. Com uma dívida de 50 bilhões de euros (mais de 300 bilhões de reais), o grupo Enel luta para gerar caixa, vendendo operações no mundo. No ano passado, a companhia se desfez da concessão de Goiás, após sucessivas queixas de mau atendimento. Há dois meses, depois de um apagão no Chile, o presidente Gabriel Boric acusou-a de negligenciar suas obrigações. O uso da tesoura em São Paulo, contudo, surtiu efeito para a empresa: a geração de caixa da Enel Brasil cresceu 131% em cinco anos, para 9,7 bilhões de reais em 2023, e o lucro subiu 37%, para 2,6 bilhões.

    arte Enel

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    A contrapartida foi a crescente deterioração dos serviços. No primeiro semestre de 2018, antes que a Enel assumisse seu controle, a Eletropaulo demorava em média cinco horas para atender a emergências. O prazo hoje é de onze horas, segundo a Aneel, enquanto a média das demais distribuidoras brasileiras é de oito horas. O apagão ocorrido em São Paulo em novembro passado escancarou a incapacidade da empresa de reagir a situações críticas. Apesar das promessas de melhorias após aquele episódio, a situação só piorou, como ilustra a ocorrência da sexta-feira 11. “Não há gente, nem equipamentos. Os funcionários estão no limite”, diz Eduardo Annunciato, presidente do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo. “Eles estão pegando sucata para reutilizar nos reparos.” O reflexo disso é a demora para restabelecer a energia. Segundo a Arsesp, a agência do estado de São Paulo que regula os serviços públicos, em novembro a Enel precisou de 24 horas para religar 60% dos imóveis atingidos. No apagão deste mês, a demora foi de 42 horas. Procurada pela reportagem, a Enel São Paulo, presidida por Guilherme Lencastre, não se manifestou.

    O retrocesso da distribuidora poderia ser estancado se outra personagem cumprisse seu dever — a Aneel. Nesta semana, a Controladoria-Geral da União instaurou um inquérito para investigar se a agência foi omissa, enquanto é alvejada pelo tiroteio político, exacerbado pelo segundo turno da eleição municipal em São Paulo. De um lado, o presidente Lula e seu ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, veem o apagão como uma oportunidade para virar o pleito a favor de seu candidato, Guilherme Boulos (PSOL). De outro, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o prefeito, Ricardo Nunes (MDB), que almeja a reeleição, jogam a culpa no governo federal. O fato é que cabe à Aneel fiscalizar a companhia e, no limite, cassar sua concessão. A União é o poder concedente no setor elétrico e a agência é sua representante legal — tanto que coube à Aneel assinar o contrato com a Eletropaulo em 1998 em nome do Palácio do Planalto. O poder de fogo da autarquia, contudo, é pífio. Seus 557 servidores representam apenas 70% do contingente previsto na Lei 10.871, sancionada em 2004 por Lula, então em seu primeiro mandato.

    arte Enel

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    Uma reestruturação séria do setor esbarra no excesso de apetite do ministro Alexandre Silveira. Segundo especialistas da área, uma de suas ambições é lotear a Aneel com apadrinhados políticos. Enquanto isso, trabalha para enfraquecer a agência e impor a sua vontade. Por isso, suas queixas e ameaças histriônicas contra a Enel — com a qual mantém relações umbilicais, inclusive na Itália — são vistas como meras bravatas de quem gosta de jogar para a plateia. “É unanimidade no mercado que Silveira está destruindo o setor elétrico”, diz Elena Landau, ex-diretora do BNDES. “Com certeza, é o pior ministro da pasta desde o governo Dilma Rousseff.”

    PARA A PLATEIA - Alexandre Silveira: omissão e interesse em enfraquecer a agência reguladora
    PARA A PLATEIA - Alexandre Silveira: omissão e interesse em enfraquecer a agência reguladora (Fatima Meira/Agência Enquadrar/Agencia O Globo/.)

    De todo modo, fortalecer a agência é indispensável para evitar que, em algum momento, a culpa recaia na própria privatização e alguém proponha reestatizar tudo. “Os problemas da Enel não significam que a privatização fracassou”, diz Landau. “Privatizações só funcionam quando as agências reguladoras funcionam.” Segundo ela, o Senado também é conivente com o aparelhamento político da autarquia, já que os indicados para a diretoria devem ser aprovados pela Casa. “Todo governo conta com a péssima atuação do Senado nas sabatinas para emplacar apadrinhados”, diz a economista. Diante da irracionalidade que contamina o debate político e mina as chances de assegurar aos clientes da Enel um fornecimento estável de energia, a única esperança dos paulistas é que não ocorram novas tempestades. Se elas vierem, o caos pode voltar.

    Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915

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