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Comércio exterior não tem espaço para voluntarismo, diz Ricupero

O embaixador, que já foi a principal autoridade da ONU na área, diz que hostilizar parceiros como o Mercosul e a China vai trazer prejuízos ao setor privado

Por Marcelo Sakate Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 7 nov 2018, 07h00 - Publicado em 7 nov 2018, 07h00
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  • ​As primeiras sinalizações do governo eleito de Jair Bolsonaro na área de comércio exterior, com tom crítico ou fazendo pouco caso de interesses do Mercosul, da China e de países árabes, revelam um profundo desconhecimento da forma como funciona o sistema de comércio global. A avaliação é de um dos maiores especialistas do mundo no tema, o embaixador brasileiro Rubens Ricupero, 81 anos. Segundo Ricupero, que foi secretário-geral da Unctad, o braço da ONU para Comércio e Desenvolvimento, entre 1995 e 2004, ministro da Fazenda e do Meio Ambiente no governo Itamar Franco, e atualmente trabalha na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo, o país não tem condições de competir em pé de igualdade em muitos mercados, e o futuro governo, ao provocar e hostilizar alguns dos principais destinos das exportações, ameaça impor prejuízos para o agronegócio e a indústria brasileira.

    Qual a sua avaliação sobre a política do novo governo para o comércio exterior? Há poucas informações até agora. Mas as primeiras afirmações sugerem desconhecimento da realidade do comércio exterior. São comentários com base em conhecimento geral. Em matéria de comércio exterior, não há espaço muito grande para voluntarismos, porque é uma área que depende sobretudo de dois parâmetros. Um é a competitividade, a capacidade de um país ser competitivo na exportação. Qual é a pauta em que ele tem vantagens comparativas. E isso não muda no curto prazo. O outro parâmetro são as características dos mercados visados. Ambos impõem limites que não são fáceis de alterar.

    Quais declarações revelam desconhecimento? Por quê? Jair Bolsonaro pode gostar mais dos Estados Unidos de Donald Trump do que da China. Mas ele não vai conseguir vender carne, soja e minério de ferro para os Estados Unidos. Esses são os principais produtos que a China compra do Brasil. Na soja, o Brasil compete com os Estados Unidos. O governo americano havia aceitado abrir mercado para a carne in natura brasileira, mas essa janela já foi fechada, porque, conforme o próprio ministro (da Agricultura) Blairo Maggi admitiu, o país não cumpriu o que havia sido acertado em questões sanitárias. O Brasil teve nos últimos anos governos diferentes na orientação política, do PT para Michel Temer, mas isso não alterou a posição da China como principal mercado de destino das vendas brasileiras. Por duas razões muito simples: porque a China é uma grande consumidora de commodities e porque a vantagem competitiva do Brasil está muito concentrada nessa área.

    Mas Jair Bolsonaro afirmou que deseja priorizar as relações comerciais com os Estados Unidos. O Brasil não pode se beneficiar de alguma forma? Pensar que uma suposta afinidade ideológica com o Donald Trump possa render um tratamento melhor para o Brasil é de uma extraordinária ingenuidade. Como o Trump tem deixado claro, ele ganha todas as partidas em que ele entra. O único princípio que ele tem é levar vantagem em tudo. 

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    E as afirmações do futuro ministro Paulo Guedes de que o Mercosul não será prioridade? Será uma estratégia acertada? O Brasil vende produtos manufaturados, sobretudo automóveis, para o Mercosul. Grande parte da agenda brasileira da indústria automotiva está concentrada na Argentina. Se a Argentina deixa de ser prioridade, o Brasil vai vender automóveis para quem? Para os Estados Unidos? Nós não temos competitividade. Tanto é assim que o acordo negociado há muito tempo com o México não foi fechado, porque os mexicanos exigem livre comércio de automóveis. E o Brasil não aceita. Me impressionou muito esse diálogo que os jornais relataram, do Paulo Guedes com a repórter do (jornal argentino) Clarín, em que, irritado, ele disse: “Nós não vamos vender apenas à Venezuela, Bolívia e Argentina”. Por que ele coloca a Argentina junto de Bolívia e Venezuela? Será que ele pensa que é a Argentina do Kirchner?​

    O novo governo terá condições de acelerar a negociação de acordos de livre comércio? Muitas promessas no programa do então candidato, e agora presidente, podem criar problemas graves para a negociação de acordos internacionais se cumpridas. É um fato sabido, por exemplo, que hoje em dia a União Europeia não assina acordo de livre comércio com países que saiam do Acordo de Paris (para a redução da emissão de gases de efeito estufa). Está claro. Isso é uma posição bem divulgada da França, que tem poder suficiente em Bruxelas para impedir que qualquer negociação desse tipo ocorra com países que se retirem do Acordo de Paris. Mas não é só isso. A agenda ambiental, de direitos humanos, de povos indígenas, tudo isso pesa muito para a Europa. Se essas questões não forem levadas com cuidado pelo novo governo, o Brasil dificilmente terá condições de abrir espaço em qualquer país desenvolvido. Há um peso muito grande dessas questões.

    O novo governo fala também em não mais fazer negócios com base em ideologia. Vai ser um avanço? É uma contradição. Eles repetem desde o início que libertariam o comércio exterior do viés ideológico. Só que, aparentemente, eles usam a expressão ideológico como sendo algo aplicado exclusivamente à esquerda. Mas, na verdade, ideologia se aplica à esquerda e à direita. Por esse ponto de vista, eles me parecem também culpados de viés ideológico. Um exemplo é esse dos Estados Unidos. Dizer ter preferência por comercializar com países ocidentais já é um viés ideológico. Mas tem muito mais do que isso. Por exemplo, dizer que haverá prioridade a Israel, que será um dos três primeiros países a serem visitados pelo presidente eleito, além dos Estados Unidos e do Chile. Na região do Oriente Médio, o grande mercado para o Brasil não é Israel. São os países árabes. Qual seria a explicação de preferir Israel aos países árabes? Só pode ser ideológico.

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    Ainda há espaço para retomar uma política de comércio exterior menos agressiva? A minha impressão é que eles não dedicaram muita atenção a isso durante a campanha. Provavelmente, será necessário que essa transição de governos avance mais, porque, em algum momento, eles terão que destacar alguém na equipe econômica que seja especialista em comércio exterior. Pelo que eu percebi, até agora não tem ninguém com essa característica.

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