Com arcabouço fiscal, Haddad tem desafio de agradar ao PT e ao mercado
Segundo as metas ambiciosas divulgadas até agora pelo ministro, o plano pode manter o déficit deste ano abaixo dos R$ 100 bilhões e zerar a conta em 2024
Assim que o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito, em 2022, começou a tratar de uma licença para gastar, no primeiro ano de gestão, acima dos limites previstos na chamada regra do teto de gastos. Era a única maneira de cumprir promessas de campanha como a de manter o benefício social aos mais pobres em 600 reais mensais, renomeado de Bolsa Família. Também estavam na conta o reajuste do salário mínimo e a reativação do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida. Mas, mesmo que muitos petistas não admitam, nenhum projeto deverá ser mais decisivo para o governo do que a proposta de um novo arcabouço fiscal, substituto do teto de gastos tão bombardeado antes mesmo do início da nova gestão.
O tema é árido e enfadonho a qualquer pessoa que não tenha entre seus campos de interesse as contas públicas. Mas é a única maneira de o governo angariar a confiança de que não entrará numa trajetória suicida de gastos, e que o compromisso com a lisura fiscal vai além da retórica. Em uma trajetória de gastos acima da arrecadação, o país se dirige de forma inexorável à insolvência, com todas as pragas que vêm junto com isso — redução de investimentos, desemprego e inflação entre elas.
Para evitar que o país despenque nesse ciclo nefasto, o Ministério da Fazenda finalizou nas últimas semanas o seu projeto de arcabouço fiscal. Segundo as metas ambiciosas divulgadas até agora pelo ministro Fernando Haddad, o plano pode manter o déficit deste ano abaixo dos 100 bilhões de reais e zerar a conta em 2024. Para aprová-lo, o ministro passou os últimos dias apresentando a sua proposta para o alto escalão do governo até culminar com o presidente da República. No percurso, Haddad tomou cuidado em evitar vazamentos antes da chegada do texto a Lula, a fim de que não houvesse especulações no mercado financeiro nem fossem dadas vantagens de informações a grupos específicos.
Haddad, mais que ninguém, sabe que transita por um campo minado. Seu projeto precisa ser convincente tanto para o mercado financeiro quanto para os petistas, que têm ojeriza a controle de gastos públicos. Outros projetos anteriores do ministro já haviam sido alvo de fogo amigo, como foi o caso da reoneração dos impostos da gasolina e etanol, criticada abertamente pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Em meio a esses embates, Haddad passou a ser criticado pelas alas mais radicais do partido por se aproximar dos interesses de financistas e até mesmo do execrado Banco Central, agora autônomo e presidido por Roberto Campos Neto, um liberal nomeado no governo de Jair Bolsonaro.
A criação de uma nova regra que agrade ao mercado e ao PT exige considerável senso de equilíbrio. Ela não pode ser totalmente baseada em limites de gastos, mas precisa ter mecanismos factíveis de controle. Uma regra frouxa terá impacto negativo, causando instabilidade econômica. “O teto de gastos de 2016 foi bem recebido muito em função da credibilidade da equipe que o elaborou”, diz Alexandre Manoel, secretário dos ministérios da Fazenda e da Economia entre 2018 e 2020 e economista-chefe da AZ Quest Investimentos. “Hoje há uma certa desconfiança, embora a regra possa parecer mais viável e coerente agora.”
Em meio a esse contexto, as discussões se encaminharam para uma regra mais flexível do que o modelo anterior. Segundo as poucas informações divulgadas sobre a medida até o fechamento desta edição, o novo arcabouço fiscal deve estipular um limite de gastos associado ao superávit fiscal e à evolução da dívida pública.
Trata-se de um modelo semelhante ao adotado na Nova Zelândia na década de 90 e replicado em 2011 na Colômbia. Em ambos os países, o objetivo é alcançar, em médio prazo, um superávit fiscal anual e trazer a dívida pública para baixo dos 50% do PIB. Na Colômbia, a tolerância para acionar gatilhos de controle é a relação de 71% da dívida frente ao PIB. Na Nova Zelândia, o teto é de 90%, e a âncora é reavaliada a cada quatro anos, visando a garantir uma trajetória sustentável de endividamento. “É uma regra que cabe tanto em governos de direita como de esquerda, porque flexibiliza o ajuste às circunstâncias de mercado e não engessa os objetivos fiscais de médio prazo”, diz Manoel Pires, ex-secretário de política econômica do Ministério da Fazenda.
Tal modelagem evita uma armadilha da qual o governo Lula deseja escapar, a de ter uma regra que não permita fazer políticas anticíclicas. Se a norma fosse gastar a cada ano de acordo com a arrecadação, ele poderia investir mais quando a economia estivesse bem, mas teria de fazer cortes severos em períodos de dificuldades. No segundo governo Lula, a estratégia foi aumentar os investimentos durante a crise financeira global, aproveitando uma maior folga fiscal da época. Para completar a estratégia anticíclica, a gestão seguinte, de Dilma Rousseff, deveria conter os gastos e recompor as contas. Ela nunca fez isso, o governo passou a dar seguidos déficits a partir de 2014, a dívida disparou e os investidores perderam a confiança no país, culminando na crise que levou ao impeachment.
Para enfrentar esse cenário caótico, a regra do teto de gastos, aprovada em 2016, tinha como maior qualidade — e fragilidade — sua simplicidade. Ela estabeleceu um limite atualizado anualmente pela inflação e, quando os gastos não coubessem no Orçamento, os políticos seriam obrigados a fazer escolhas. Isso funcionou em 2018 e 2019, mas a regra começou a ser vergada já na crise da pandemia. No total, o governo Bolsonaro abriu brechas na lei que estouraram o teto em 795 bilhões de reais em seu governo, segundo estimativa do FGV-Ibre. Já Lula conseguiu, logo de cara, uma licença para gastar mais de 200 bilhões de reais acima do teto. Essas práticas não têm como ser mantidas.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833