A Covid-19 jogou luz sobre uma população que até então era pouco lembrada no país: pessoas de baixa renda que sobrevivem de trabalho informal e que, por isso, são altamente vulneráveis a crises como a que assola o país e o mundo neste momento. Quando o coronavírus deu os primeiros sinais de que havia chegado para deflagrar a epidemia, os técnicos do Ministério da Economia agiram rápido. As medidas de manutenção de empregos e, principalmente, o auxílio emergencial, operado pelo Ministério da Cidadania de Onyx Lorenzoni, foram primordiais para garantir a subsistência da população aos efeitos severos da pandemia. Tal iniciativa pode deixar um legado significativo em meio caos vivido desde março. Na Esplanada dos Ministérios, o chefe da Economia, Paulo Guedes, estuda mecanismos para garantir que a parcela mais desfavorecida dos brasileiros tenha por parte do Estado algum tipo de auxílio permanente. Assim, ganharam corpo nas últimas semanas discussões pela implementação da chamada renda mínima, um aporte mensal do governo federal que iria além do momento pós-crise e aumentaria o grau de assistência social no país. É consenso entre parlamentares e governo que, além do aspecto humanitário da questão, a retomada do consumo será primordial para o respiro das contas públicas passado o pico da crise de saúde. Transferir renda, nesse caso, é uma maneira de fazer a roda da economia girar (e conquistar votos). O problema é como viabilizar essa transferência de renda em um país que vive uma situação dramática nas contas públicas.
Solução simplificada, adotada para fazer com que os recursos chegassem mais rápido à população, a ampliação do auxílio emergencial de forma permanente não cabe na realidade brasileira. Cada parcela, paga a mais de 50 milhões de brasileiros, custa cerca de 50 bilhões de reais aos cofres públicos. Mesmo se incorporasse o pagamento do Bolsa Família, seriam necessários 370 bilhões de reais por ano para fechar a conta, segundo cálculos do economista Marcos Mendes, do Insper. Além de impagável, o programa, caso fosse instituído, fomentaria a informalidade e poderia causar efeitos nocivos a longo prazo. “O valor é muito alto como um benefício continuado. É preciso incentivos para incluir essas pessoas no mercado formal de trabalho”, afirma Mendes. Apesar de ser necessária a manutenção da renda emergencial no período da pandemia, a adoção do benefício em definitivo poderia gerar uma distorção e desequilibrar gastos com saúde e educação. Uma das saídas, que já foi levada ao conhecimento de diversos parlamentares — como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia — e conta com simpatia no Congresso, é estruturar um benefício a famílias com filhos entre zero e 6 anos, que seria viabilizado pelo fim das deduções com gastos de saúde e por dependentes no imposto de renda, além da tributação sobre a distribuição de dividendos.
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Clique e AssineEssa, porém, está longe de ser a solução ideal. Apesar do imenso desafio, a proposta mais consistente nessa seara é defendida pelo ministro Paulo Guedes. Não se trata de um auxílio vinculado à primeira infância, como vem se desenhando na dobradinha entre Congresso e acadêmicos. O ministro quer unificar os beneficiários do Bolsa Família e os elegíveis para receber o auxílio emergencial em um único programa, racionalizando os gastos com assistência social. A proposta até já ganhou apelido: Renda Brasil. Para bancar o benefício, o governo estuda avançar nas propostas que envolvem o imposto de renda e instituir o chamado imposto negativo. O conceito é o que há de mais moderno na literatura econômica liberal em relação a programas de transferência de renda. A ideia, defendida pelo economista americano Milton Friedman, um dos expoentes da Escola de Chicago, tem por premissa usar o Fisco para corrigir distorções. Quem ganha muito pouco recebe um complemento de renda custeado por quem ganha muito, contribuinte que deixa de obter restituições tão generosas. O imposto negativo, nesses moldes, levaria a uma distribuição de renda mais eficiente e com um processo desburocratizado. O grande desafio visto por economistas nesse modelo é que ele precisa ser acompanhado de uma profunda reforma tributária e da revisão do sistema previdenciário para sair do papel. Contudo, o tamanho da dificuldade para implementar um projeto dessa natureza reflete o legado que deixaria ao país. “Um imposto negativo é possível, mas muito difícil de ser feito. Seria preciso unificar a transferência de renda e, para isso, exige-se a remodelação de todo o sistema de proteção social, inclusive da Previdência, o que demanda muita força política”, afirma o economista Marcelo Medeiros, professor da Universidade Princeton.
Fazer o dinheiro chegar à camada que mais necessita implica em debates sobre a eficácia dos programas assistenciais já existentes no país, algo positivo para quem segue a diretriz no ajuste de gastos. Segundo o Portal da Transparência, os programas sociais pagos em 2019, à exceção do abono salarial, atingiram cerca de 10,65% da população brasileira. O IBGE, porém, mostra que cerca de 52,5 milhões de pessoas, 25% da população, viviam em 2018 abaixo da linha da pobreza definida pelo Banco Mundial, com cerca de 435 reais mensais. Apesar de ter a diretriz definida, Guedes entende a importância do Congresso Nacional nesse processo. Mudanças no benefício a idosos e deficientes (BPC) e no abono salarial, por exemplo, foram excluídas da reforma da Previdência. E alterações no imposto de renda exigem muita negociação. Para acelerar os trâmites, o deputado João Campos (PSB-PE) se empenha em consolidar uma frente parlamentar e organizar as propostas com o governo federal. O objetivo é formalizar uma base sólida para o tema. “Pretendemos unificar os projetos e definir as fontes de financiamento”, diz ele, que inicia a articulação na próxima semana. A população mais vulnerável agradece — e a economia também.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692