As torres que expelem chamas e dominam o imenso complexo petroquímico da Braskem, em Camaçari, tingem o céu do Recôncavo Baiano de vermelho e não deixam nenhum morador do município esquecer o poderio do colosso ali instalado. Maior produtora de plástico do Brasil, a companhia emprega mais de 8 000 pessoas e produz cerca de 16 milhões de toneladas de resinas por ano. Hoje a petroquímica está no centro de um imbróglio que envolve dois mastodontes corporativos nacionais, um estatal e o outro privado: os sócios Petrobras e Odebrecht. Ambos se digladiam pelo futuro da Braskem, mesmo que isso faça sangrar o alvo da discórdia. A estatal vê a petroquímica como um boi pronto para o abate, que deve ser vendido imediatamente. Já a construtora, em recuperação judicial, aposta na valorização da Braskem como uma tábua de salvação para sua preocupante fragilidade financeira. O plano original, desenhado pela Odebrecht no ano passado, era recuperar o seu valor de mercado e vendê-la em até 36 meses para, com dinheiro na mão, pagar aos credores. A possibilidade, no entanto, foi rechaçada pelo presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, pouco antes do Natal. “Queremos que pelo menos a nossa parte seja vendida em doze meses”, decretou na ocasião.
Castello Branco é um executivo altamente alinhado com o ministro da Economia, Paulo Guedes. Seu norte é vender todos os ativos da petroleira até que reste apenas uma atividade em sua vasta gama de negócios: a exploração de óleo e gás. A urgência, porém, aumentou depois de a Braskem ter se enfiado numa encrenca de dimensões titânicas em Maceió, Alagoas. Ali, uma instabilidade em uma mina de extração de sal-gema, utilizado na produção de PVC, provocou o afundamento do solo em bairros inteiros e rachaduras sérias em milhares de imóveis. A Petrobras teme que a desastrosa operação no Nordeste, aliada ao ciclo de baixas do setor petroquímico, culmine numa desvalorização severa do valor de mercado da empresa. O desastre de Maceió enterrou as negociações para a venda da petroquímica à holandesa LyondellBasell por 20 bilhões de dólares. Foi o estopim para que Castello Branco exigisse à Odebrecht que sacasse do posto o então presidente da Braskem, Fernando Musa. A construtora, acuada, acatou. Para solucionar a crise em Alagoas, a Braskem assinou um acordo de indenização com os 17 000 moradores afetados no valor de 1,7 bilhão de reais. A medida, apesar de caríssima, ajudou a melhorar a imagem da empresa para, eventualmente, torná-la mais atraente a potenciais compradores.
Ao longo de todo o ano passado, a petroquímica foi desmontada aos poucos. Falhas na gestão de Musa, brigas entre os acionistas, o episódio em Maceió e a desistência da holandesa fizeram com que o valor de mercado da companhia despencasse 40%. A lucratividade caiu dos 2,9 bilhões de reais, registrados entre janeiro e setembro de 2018, para 124 milhões de reais no mesmo período de 2019. Não bastassem os problemas de gestão, fantasmas do passado também voltaram a assombrar a companhia. Seu ex-presidente José Carlos Grubisich — à frente do gigante entre 2001 e 2008 — foi preso nos Estados Unidos, no fim de novembro, sob a acusação de suborno e lavagem de dinheiro em um esquema internacional. Um diretor recém-saído da empresa resumiu o momento atual: “Trabalhar na Braskem é insano. Ela é uma fábrica de escândalos”.
Mesmo com a notória filosofia liberal da gestão de Paulo Guedes, a declaração de Castello Branco sobre vender a participação da Petrobras em até um ano trouxe uma lufada de pânico e fúria à sede da Odebrecht, em São Paulo. A Braskem é um ponto nevrálgico na recuperação judicial da empreiteira. Com as dívidas dissecadas nos tribunais desde junho, a Odebrecht vê na venda da petroquímica a solução para quitar suas obrigações com os credores e redirecionar suas atividades exclusivamente à construção civil. A situação piora pelo fato de as três maiores instituições financeiras públicas do país — Banco do Brasil, Caixa e BNDES — deterem fatia expressiva dos 98 bilhões de reais que a empreiteira soma em dívidas. Os três bancos federais têm uma posição muito mais agressiva e uma paciência bem menos elástica que seus congêneres privados, que também sofreram calote, mas, ao contrário dos públicos, só realizaram os financiamentos com garantias — no caso, ações da Braskem. Com isso, numa venda a longo prazo da petroquímica, esses bancos tendem a ganhar. As instituições do governo, por sua vez, endurecem o jogo durante as assembleias de credores e cobram planos mais sólidos da Odebrecht. Para Caixa, BB e BNDES, a valorização da Braskem nada significa, pois querem a quitação dos débitos da forma mais rápida possível. Foi a Caixa, por sinal, que deflagrou o processo de recuperação judicial da Odebrecht após pedir a falência do grupo para executar uma dívida de 650 milhões de reais, em junho. O pedido foi negado pela Justiça.
O jogo econômico por trás da Braskem é complexo e está exposto nos embates societários e nas assembleias de credores da Odebrecht. Há, porém, outros interesses com o poder de influenciar o destino da petroquímica. Do ponto de vista político, o governo de Jair Bolsonaro vê na Odebrecht um exemplo da corrupção desenfreada dos governos do PT que precisa ser varrido do mapa. A recuperação da Braskem e sua venda por um preço mais elevado, entretanto, podem dar novo fôlego à empreiteira. Já a venda imediata ajudaria a encher o caixa do governo, que necessita urgentemente de recursos para reduzir o déficit primário, e, de quebra, prejudicaria os planos da Odebrecht de se pôr de pé. No dia 22 de novembro, por exemplo, Paulo Guedes exaltou-se ao falar da empreiteira. “O BNDES emprestou à Odebrecht, que está quebrando”, afirmou. Logo após a reclamação pública, Guedes voltou atrás e disse que não deveria estar tocando no assunto. Foi um escorregão. Mas é evidente a vontade, tanto de Guedes quanto de Bolsonaro, de que a venda imediata da Braskem se transforme na pá de cal para uma companhia que teve uma expansão vertiginosa alavancada por malfeitos, propinas, fraudes e todo tipo de irregularidade justamente quando estava associada à gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. “O governo lavou as mãos e passa a mensagem de que não vai ajudar a empresa”, diz uma fonte ligada às discussões judiciais. O risco é que, em meio a um embate que envolve tantos interesses e conflitos, o fogo que sai das torres da petroquímica acabe se apagando.
Publicado em VEJA de 15 de janeiro de 2020, edição nº 2669