As metáforas com economia doméstica costumam ser bastante usadas por analistas para explicar aos leigos os riscos de um país se endividar em excesso. Apesar de nem sempre adequadas e de simplificarem demais as questões de contas públicas, algumas se aplicam bem. Tome como exemplo o momento atual da economia brasileira. Poderia se dizer que o país entrou na crise causada pela pandemia como o consumidor que está com o limite do cheque especial estourado e então recebe uma grande conta inesperada. Resta a ele se endividar mais a curto prazo e fazer um reajuste de seus gastos ainda mais intenso do que planejava. Em 2013, antes da última grande crise nacional, o Brasil detinha uma dívida bruta em relação ao seu PIB de 60,2%, quando a média nos países emergentes era de 38,2%, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Anos de descuido fiscal depois e com a necessidade de aprovação do teto de gastos para forçar um ajuste necessário, o país terminou 2019 com dívida de 89,5% e, para este ano, a expectativa é atingir 101,4%, quando a média dos emergentes será de 62,2%. Em sete anos, a diferença em relação aos nossos pares quase dobrou para 40 pontos porcentuais. A situação não era boa e piorou.
A disparada desse indicador em 2020 é explicada pelo forte dispêndio fiscal realizado pelo governo de Jair Bolsonaro para evitar uma queda dramática do PIB, com medidas como o auxílio emergencial. A catástrofe foi evitada, mas o preço é alto. O Brasil enfrentará a maior crise fiscal de sua história recente, o que pode consistir numa grande ameaça à estabilidade e ao seu crescimento. O país é o grande emergente que apresenta a pior situação na relação entre dívida e PIB. Entre as nações em desenvolvimento, está melhor apenas do que casos excepcionalmente negativos como Angola, Líbano e Sudão. Até a Argentina, que acabou de declarar a maior moratória de sua história e quase esgotou as suas reservas em dólar, deve fechar 2020 abaixo dos 100% de dívida. Nações de perfil econômico similar, como a Turquia, e os vizinhos Chile e Peru não vão chegar a 45%. Mais próximos da situação do Brasil estão o Reino Unido e outros países desenvolvidos. A diferença deles para nós é que o mercado confia no fato de que os ricos terão sempre condições de honrar os seus compromissos e não cobra juros altos para comprar seus títulos da dívida.
Com os emergentes, a confiança não é a mesma. É certo que os investidores estão mais condescendentes na atual crise e haverá uma paciência maior. Mas a situação do Brasil é peculiar. Quem acompanha contas públicas já alertava para o cenário que se avizinhava desde o começo da pandemia. Mas foi só nas últimas semanas que o risco fiscal entrou de vez no radar dos mercados, quando, depois de uma forte recuperação do Ibovespa diante do pior momento da pandemia, o jogo virou. Em setembro, a baixa foi de 4,8%. No ano, o real também se consolidou como a moeda relevante com a maior queda em relação ao dólar, em cerca de 40%. Além disso, as retiradas de investimentos estrangeiros de risco no Brasil já estão em 24 bilhões de dólares neste ano, contra 11 bilhões no ano passado.
O melhor exemplo do clima virado nos mercados, porém, tem relação com o que se chama de aumento da inclinação da curva de juros — com taxas baixas de curto prazo e cada vez mais altas de longo. Isso se explica: com a inflação controlada e o compromisso fiscal assumido pela equipe econômica do ministro Paulo Guedes como direcionamento do governo, o Brasil conseguiu ir baixando a sua taxa básica de juros nos últimos tempos, até atingir inéditos 2%. Mas, no último mês, o mercado começou a estimar os juros futuros bem acima desse patamar, em até 8%. O efeito disso é que se o Tesouro quiser emitir títulos de mais longo prazo precisará pagar mais. Ou, se não aceitar essas condições, terá de adiantar o vencimento de suas dívidas para bancar os gastos do governo. É o que está acontecendo. “O Tesouro não quer assumir esse custo, e há pouco apetite por títulos de longo prazo hoje, em especial dos estrangeiros”, afirma o ex-chefe do departamento de mercado aberto do Banco Central e consultor independente da Omninvest Sergio Goldenstein.
Na quinta-feira 8, o Tesouro emitiu 25 milhões de títulos com vencimento em abril de 2021. Com isso, há 268 bilhões de reais a ser pagos em seis meses, cerca de 19% da dívida prefixada e 6% da total. “Não estamos falando de risco de calote, porque, no limite, o BC começaria a atuar para evitar a insolvência”, diz a ex-secretária executiva do Ministério da Fazenda e economista-chefe do Santander Brasil, Ana Paula Vescovi. “O risco é de não saber o que fazer para estabilizar essa dívida crescente.”
As agências de avaliação de risco estão de olho. No começo da pandemia, elas revisaram de forma extraordinária as notas na América Latina. A Standard & Poor’s manteve a nota do Brasil em BB-, três degraus abaixo do selo de bom pagador, mas revisou a perspectiva de positiva para estável. Até o fim do ano, uma nova avaliação será divulgada. “A deterioração fiscal será pior do que se previa em abril, mas, por outro lado, a contração econômica foi mais moderada”, explica Livia Honsel, analista principal do rating brasileiro na S&P. “Uma dívida tão alta limita a perspectiva de melhorar a nota.”
Para os mercados se acalmarem, o governo precisa, ao menos, sinalizar com clareza que a agenda de Guedes de controle das contas, por meio das grandes e microrreformas, vai prevalecer. E que o desejado programa de renda básica, o Renda Cidadã, será criado só se houver cortes em outras áreas. O espaço é apertado. O Orçamento enviado ao Congresso prevê que haverá um novo déficit primário no próximo ano, de 3%. Considerando que a economia cresça 2,5% ao ano, será preciso, para reduzir a dívida com um superávit de 1,5% do PIB, fazer um esforço fiscal de 4,5 pontos, estimou para VEJA o ex-secretário do Tesouro Mansueto de Almeida. “Isso deve ser mantido por uma década, ou o superávit anual precisará ser maior do que 1,5%. Não há como ficarmos com a dívida tão alta por muito tempo”, diz. O risco de não cuidar das contas é o mercado perder a confiança no Brasil, exigir juros mais altos, o governo criar mais impostos para pagar a dívida, causando o aumento do dólar, e isso ainda acarretar em inflação alta e empobrecimento da população. O Brasil já viu esse filme. Voltar a esse cenário seria perder três décadas de avanços conquistados a duras penas.
Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709