Os movimentos feitos pelo mercado financeiro nos últimos dias mostraram, sem dar margem a dúvidas, os efeitos diretos das declarações das autoridades nos desígnios da economia. Não é de hoje que o presidente Lula comete disparates, mas desta vez ele parecia disposto a tudo, numa estratégia incompreensível. Lula criticou a autonomia do Banco Central, atacou de novo Roberto Campos Neto, o chefe da autarquia, desprezou a responsabilidade fiscal e insistiu na velha cantilena de que gasto é investimento. E tudo isso em pouco mais de uma semana, reforçando um comportamento desmedido que acabaria por levar grande nervosismo ao país. O resultado das afirmações extravagantes não poderia ter sido outro: o dólar disparou, o Ibovespa, o principal índice da bolsa brasileira, encolheu, o risco-país subiu, estrangeiros retiraram recursos do mercado brasileiro e o mau humor se espalhou por diversos setores econômicos. Na quarta-feira 3, Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deram declarações que geraram algum alívio. “Responsabilidade fiscal é compromisso”, disse o presidente. Houve o aceno de um corte de 26 bilhões de reais no próximo Orçamento.
O que se viu nas últimas semanas foram reações clássicas dos investidores. Na tentativa de antecipar o pior, muitos vêm abandonando ativos de risco e buscando refúgio na renda fixa, com seus bons retornos, e no dólar, que chegou a tocar os 5,70 reais — o maior nível desde janeiro de 2022. A crise provavelmente não vai parar por aí: enquanto não houver sinais críveis de avanço na agenda fiscal, a pressão sobre o real vai continuar, com efeitos nefastos para a inflação e os juros.
É verdade que o cenário externo não está favorável para as moedas de países emergentes. Os juros altos por mais tempo nos Estados Unidos sugaram recursos para os títulos da maior economia global e fortaleceram o dólar no mundo todo. No entanto, o mercado vê como possíveis dois cortes de juros por lá até o fim do ano, uma leitura endossada por Jerome Powell, presidente do Fed, o banco central americano. Essa é uma boa notícia para o mercado de capitais brasileiro, mas o problema maior está aqui dentro.
Por mais que o governo tente atribuir ao cenário externo o estresse no mercado financeiro local, basta observar a dinâmica recente do câmbio para concluir que questões internas justificam o movimento. Sempre que Lula declara aos quatro ventos o seu descontentamento com o BC, a cotação do dólar reage avançando. À frente do BC nos primeiros dois mandatos de Lula na Presidência, Henrique Meirelles afirma que alguns fatores explicam o movimento recente do dólar — e a incerteza fiscal, em conjunto com a expansão de gastos do governo, é um deles. “Os investidores locais e internacionais ficam preocupados, diminuindo o investimento no Brasil”, diz.
Na visão de gestores, economistas e analistas, Lula parece — ou finge — não entender quão danosa é a desvalorização cambial para a economia brasileira. Se, por um lado, o dólar forte é música para os ouvidos dos exportadores, por outro, trata-se de um canal de contaminação para a inflação. Isso porque os insumos importados ficam mais caros, e essa conta é inevitavelmente repassada aos consumidores, mesmo que em diferentes proporções, a depender dos componentes atrelados ao dólar que são usados na fabricação dos produtos. A partir daí, vêm os desequilíbrios.
Alguns exemplos prosaicos mostram como a alta do dólar impacta a vida das pessoas. De imediato, quem pretende viajar para o exterior se vê obrigado a adiar os planos ou desembolsar mais reais para comprar uma mesma quantidade de dólares. No mercado doméstico, as pessoas sentem no bolso o efeito cambial — até o pão francês, com trigo importado em sua composição, fica mais caro. Para piorar a equação, entram os juros: com a inflação sob risco de subir, a taxa Selic, que baliza a economia, precisa permanecer em nível elevado para frear o consumo. Os juros futuros, negociados no mercado financeiro, sobem prontamente. A bola de neve cresce ainda mais se for considerada na conta a chamada “desancoragem” das expectativas de inflação: ao vislumbrar uma potencial piora dos preços na economia, agentes de mercado começam a acreditar que o BC não conseguirá levar a inflação para a meta de 3%, o que poderia forçar uma nova alta de juros. Sem um ajuste fiscal que ordene os gastos do governo, a visão para a inflação fica mais turva. “O pano de fundo é que existe um desequilíbrio fiscal e as pessoas estão preocupadas se o Brasil vai adotar uma estratégia heterodoxa para resolver o problema”, diz Alexandre Chaia, gestor da Carmel Capital. “Isso gera alta do dólar, potencializada pelas falas do presidente.”
Outro sinal de problema é o aumento do prêmio de risco, o “dinheiro extra” que investidores cobram para financiar o governo. O Tesouro IPCA+ com vencimento em 2035 está pagando um prêmio de 6,58% acima da inflação — trata-se do maior nível desde março de 2016, ano do impeachment da presidente Dilma Rousseff. O próprio Tesouro Nacional tem feito emissões de títulos em menor volume diante da dificuldade de rolar a dívida do governo junto ao mercado. Para ilustrar o cenário negativo, é possível citar também a variação do Credit Default Swap, ou CDS, um contrato derivativo que serve de medida de risco-país e está nos maiores níveis desde novembro de 2023.
De acordo com o economista Livio Ribeiro, especializado em comércio exterior, as tendências globais, como os níveis dos juros dos Estados Unidos ou os preços das commodities, costumam ditar historicamente os rumos da taxa de câmbio no Brasil — mas não é o que está acontecendo. Um modelo matemático desenvolvido por ele estimou que, no primeiro semestre deste ano, 82% da alta do dólar foi causada por fatores internos. Em geral, essa proporção costuma ficar bem abaixo dos 50%. Ou seja: o dólar estaria perto dos 5 reais caso tivesse subido só por causa das pressões externas. “É um modelo que rodamos desde 2005 e, em 95% do tempo, é a influência internacional que prepondera. O oposto é raro”, diz Ribeiro, que é sócio da consultoria BRCG e pesquisador associado da Fundação Getulio Vargas.
Os investidores temem também pelo futuro do BC, já que caberá a Lula a indicação de nomes para compor a diretoria e o comando da entidade após o fim do mandato, em dezembro deste ano, de Campos Neto. A isso se soma a crescente descrença com o compromisso fiscal do governo. Logo no começo do mandato, em 2023, a PEC da Transição trouxe a bomba de 200 bilhões de reais extras para pagar programas de governo e investimentos em obras, além dos aumentos do salário mínimo acima da inflação, que impulsionam os benefícios públicos atrelados a ele, como aposentadorias, pensões, seguro-desemprego e o abono salarial. Juntos, eles tomam mais de 50% do Orçamento federal.
Por sua vez, o teto de gastos foi abolido para dar lugar ao arcabouço fiscal, que prevê um montante de desembolsos do governo condicionado ao cumprimento de metas de resultado primário. O mercado deu o benefício da dúvida, mas logo recebeu um balde de água fria, quando as metas de superávit primário foram alteradas, jogando para 2026 — o último ano do atual governo — a proposta de déficit zero. Agora, a Fazenda estuda o contingenciamento de gastos, que será, segundo o ministro Fernando Haddad, “do tamanho necessário para cumprir o arcabouço fiscal”. Quais cortes ou medidas isso quer dizer, porém, ninguém sabe. “Para mim, Lula está dando um tiro no próprio pé”, diz o sócio da gestora Legacy Capital, Felipe Guerra.“Enquanto o presidente não tomar um choque de realidade, a desvalorização do real vai continuar, com chance inclusive de o câmbio superar os 6 reais.”
Apesar de o esgarçamento da política fiscal estar no cerne dos problemas que fizeram o dólar disparar, há quem relativize essa visão. “O governo vem fazendo um esforço para equilibrar as demandas da sociedade, com as restrições da economia e do mercado”, diz o economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo. Para ele, a traumática mudança das metas fiscais, em abril, foi menos uma morte precoce do jovem arcabouço fiscal e mais uma “dilatação do prazo para a estabilização da dívida”, em suas palavras — sobretudo em um mundo onde muitos países estão às voltas com déficits altos e com demandas crescentes por gastos sociais após a pandemia.
Ainda assim, os resultados de uma economia sustentada por gastos sem freios e por juros e taxas de câmbio altos já foram testados no país — e com resultados desastrosos. “Juros mais elevados travam a economia e tornam o desafio de estabilizar a dívida pública ainda mais difícil”, diz Marcos Mendes, pesquisador do Insper e ex-assessor do Ministério da Fazenda. Com uma mudança de tom na quarta-feira 3, Lula fez o mínimo para acalmar um pouco o mercado e interromper a escalada da desvalorização do real — a maior registrada entre todas as moedas neste ano. Mas isso pode durar apenas até o próximo disparate do presidente, que parece não ver limites. Ou Lula compreende qual é o seu papel no equilíbrio da economia ou o Brasil pagará um preço alto por seus arroubos.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900