As inovações do agro brasileiro que transformam desafios em oportunidades
O aquecimento global traz perdas aos produtores agrícolas, mas soluções para lidar com o problema podem aumentar a produtividade
Localizada no norte de Goiás, a Fazenda Conforto — maior empresa de confinamento de gado do Brasil — ilustra os desafios e as oportunidades que as mudanças climáticas trazem para o agronegócio. Em 2023, faturou 1 bilhão de reais com a venda de 165 000 animais para abate e comercialização da carne para o mercado externo. No primeiro trimestre deste ano, no entanto, a seca extrema na região do Cerrado provocou uma quebra de 40% na safra da propriedade, afetando as produções de milho e capim, destinados à alimentação do rebanho bovino, e de soja, usada na adubação do solo.
“Nunca choveu tão pouco e fez tanto calor aqui na região”, diz Sergio Pellizzer, presidente da fazenda, que implementou uma série de iniciativas nos últimos cinco anos para otimizar o uso de água na área de 12 000 hectares (correspondente a mais de 10 000 campos de futebol), como a construção de onze represas, o plantio de dezenas de milhares de mudas nativas para proteger as nascentes e a adoção de sistemas mais eficientes de irrigação. Essas ações resultaram em uma redução de 49% no consumo de água por animal abatido entre 2019 e 2024. “A água é o nosso bem mais precioso”, afirma Pellizzer. “Se nossa fazenda não tivesse uma boa gestão desse recurso, a crise hídrica deste ano certamente causaria prejuízos para o negócio em uma escala muito maior.”
As práticas sustentáveis adotadas pela Fazenda Conforto, com investimentos de 40 milhões de reais nos últimos dois anos, aumentam a resiliência do negócio aos efeitos do aquecimento global e também geram novas fontes de financiamento. Após auditoria externa que comprovou sua eficiência no uso de recursos naturais e na recuperação e preservação do meio ambiente, a empresa captou recentemente 5 milhões de dólares, com juros mais baixos que os da média do mercado, do AGRI3 Fund, uma iniciativa que conta com o apoio da Organização das Nações Unidas e da ONG Conservação Internacional para distribuir 1 bilhão de dólares entre projetos agrícolas sustentáveis.
Os planos da Conforto para esses recursos incluem a conversão de 2 500 hectares de pastagens degradadas em área de agricultura. Isso deve elevar ainda mais sua produtividade, multiplicando por três a atual taxa de lotação, de um animal por hectare. O sistema produtivo da fazenda também inclui a irrigação das áreas de confinamento, o que ajuda o gado a viver em regiões com ocorrência cada vez mais frequente de ondas de extremo calor — um problema que, ao lado de outros eventos climáticos, vem causando prejuízos no mundo inteiro.
Um estudo de 2023 da FAO, a agência das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura, aponta que secas, inundações, tempestades e temperaturas extremas — fenômenos intensificados pelo aquecimento global — provocaram, nos últimos trinta anos, perdas de 3,8 trilhões de dólares no setor agropecuário em todo o mundo (veja o quadro). Isso é equivalente a quase o dobro do produto interno bruto do Brasil no ano passado.
Plantas mais resistentes
Em Mato Grosso, o cenário de seca e calor também é preocupante. Para auxiliar os produtores de milho a lidar com essa realidade, a Syngenta Seeds, divisão de sementes da multinacional chinesa que faturou 32 bilhões de dólares no mundo no ano passado, implantou em 2019 uma rede de cinquenta estações meteorológicas no estado. Essas estações monitoram com precisão a disponibilidade hídrica em diferentes tipos de solo. Com base nos dados coletados, a empresa avalia o comportamento de diferentes variedades de milho em diversos cenários climáticos, buscando identificar as mais resistentes à seca. “Há um híbrido (planta resultante do cruzamento de sementes), por exemplo, que pode perder menos água durante a fotossíntese. É o resultado do processo de melhoramento genético, no qual transferimos os genes responsáveis por essa capacidade de resiliência para outras plantas”, afirma Fabricio Passini, diretor de agronomia da Syngenta Seeds.
Ao longo dos cinco anos do projeto, a empresa desenvolveu variedades de milho altamente resistentes à seca, como a que proporciona produtividade de 175 sacas por hectare — a média nacional, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), é de 100 sacas por hectare.
Com o objetivo de desenvolver uma variedade de trigo adaptada ao clima tropical e resistente à seca, a Embrapa, empresa pública de pesquisa agropecuária, desenvolve um projeto que utiliza técnicas de transgenia, incluindo a introdução de um gene de girassol no genoma do trigo. A nova planta, ainda em fase de testes em laboratório, deve se tornar um produto comercial em cinco anos. “A tecnologia já foi aprovada pela CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), mas ainda precisa passar por avaliações de desempenho agronômico, registro da tecnologia e multiplicação das sementes para alcançar escala comercial”, diz o pesquisador da Embrapa Gilberto Cunha.
Para acelerar o ciclo de inovação na área agrícola, que costuma ser mais lento em empresas e universidades públicas, os biólogos Rafael Souza e Jader Armanhi fundaram em 2021 a Symbiomics, uma startup de biotecnologia que utiliza micro-organismos para aumentar a produtividade agrícola. Com aporte inicial de 10 milhões de reais de um fundo de investimentos dedicado a projetos na área, a equipe de catorze pesquisadores vasculha solos e plantas de diferentes regiões do Brasil em busca de bactérias e fungos com propriedades que beneficiem as culturas de milho, soja, algodão, cana-de-açúcar e pastagens, ajudando-as a enfrentar as condições climáticas adversas.
Um dos projetos de pesquisa, focado em gramíneas e cactos do Cerrado, identificou fungos com a capacidade de captar e reter água e bactérias com propriedades antitérmicas, que auxiliam as plantas a diminuir sua temperatura interna para lidar com o calor extremo. Atualmente, o laboratório da empresa possui uma coleção de 10 000 micro-organismos “isolados” e com seus genomas sequenciados.
“Esses micro-organismos, quando utilizados nas culturas agrícolas, funcionam como um seguro contra perdas relacionadas ao clima. Na soja, por exemplo, as perdas de produção devido às secas no Cerrado estão em torno de 40%. Estimamos que podemos reduzir essa taxa para até 10% com o uso de bactérias e fungos, o que representaria uma economia de bilhões de reais”, afirma Souza, que projeta o lançamento comercial do primeiro “produto” da startup em 2025.
Pragas e doenças
As mudanças climáticas também intensificam o aparecimento de doenças e pragas nas lavouras. Um estudo recente da Universidade Nacional de Singapura indicou que nuvens de gafanhotos se tornaram mais intensas com o aumento da temperatura global. Outro fator que favorece as pragas, segundo Gilberto Cunha, da Embrapa, é a maior umidade que pode ocorrer em determinadas regiões, como a decorrente das chuvas de setembro de 2023 e maio de 2024 no Rio Grande do Sul. De acordo com o pesquisador, esses eventos extremos favoreceram a proliferação de fungos e o aumento de doenças nas culturas de trigo, cevada e triticale.
Sinal de que esses problemas são crescentes, a Ihara, fabricante brasileira de defensivos agrícolas, registrou, de 2023 a 2024, um aumento de 100% na demanda por um de seus fungicidas, especialmente entre os produtores do Sul. “Nossa linha de defensivos químicos oferece soluções para alguns dos efeitos das mudanças climáticas no campo. Além disso, já investimos 50 milhões de reais no desenvolvimento de uma linha de produtos biológicos, que causam menos impacto ambiental”, diz Roberto Rodrigues, gerente de marketing da Ihara. “Essa divisão responde por 5% das nossas vendas, e a projeção é que represente de 15% a 20% em três anos.”
Tecnologias de vanguarda, ainda em desenvolvimento em nível global, também despontam como aliadas na luta contra os efeitos das mudanças climáticas. É o caso da edição genômica, que consiste em fazer pequenas alterações nos genes das plantas para conferir a elas uma nova característica — nesse caso, uma resistência maior a pragas e doenças. A InEdita Bio, startup localizada em Florianópolis, surgiu em 2022 com esse propósito. “Nosso foco são as culturas de milho e soja, que têm problemas complexos, causadores de perdas de bilhões de dólares todos os anos, como os ocasionados pela ferrugem-asiática, um fungo que exige gastos consideráveis com fungicidas para manter a produtividade”, afirma Paulo Arruda, fundador da InEdita Bio e pesquisador em genética e biologia molecular vinculado à Universidade Estadual de Campinas.
A empresa, que conta com uma equipe de oito pesquisadores de dedicação integral, está estudando os cerca de 30 000 genes da espécie Phakopsora pachyrhizi, fungo conhecido popularmente como ferrugem-asiática, além de estimados 40 000 genes da soja, para entender a melhor forma de tornar a planta mais resistente a essa doença, cuja proliferação é facilitada pelo excesso de chuvas. Segundo Arruda, os primeiros resultados satisfatórios foram obtidos em laboratório, e o ensaio de campo, para testar a planta em ambiente real, deve ocorrer no início de 2026. “Nosso objetivo é obter uma soja que exija 50% a menos de fungicida para combater a ferrugem-asiática. Isso já será uma grande vitória e economizará bilhões de dólares para os produtores”, diz ele. É o agronegócio brasileiro transformando a ameaça climática em oportunidades.
Publicado em VEJA, julho de 2024, edição VEJA Negócios nº 4