Aos trancos e barrancos, no incerto ambiente de pandemia, as condições da economia brasileira seguiam dentro do plano do ministro da Economia, Paulo Guedes, até o fim de 2020. Depois de um primeiro semestre muito afetado pela Covid-19, a atividade econômica se recuperava no fim do ano, e como prova disso o PIB do quarto trimestre, divulgado na quarta-feira 3, acabou saindo melhor do que muitos esperavam, uma alta de 3,2%. Dessa forma, a queda no ano ficou em 4,1%, um número abaixo das expectativas do mercado e de analistas, que chegaram a prever queda de até 9%, em meados do ano.
Tal resultado só foi possível pela postura radical do governo de concentrar os seus esforços — e recursos — em estímulos de 9,4% do PIB para salvar a economia. Por ironia, coube a Guedes, reconhecido por suas credenciais liberais, se tornar o ministro da Economia mais gastador entre os países emergentes. O México, por exemplo, não seguiu o mesmo caminho e amargou queda de 8,7% do PIB. “Gastei de consciência tranquila porque era para a saúde dos brasileiros”, disse o ministro à audiência de um podcast para pequenos investidores de ações. Era para a saúde, mas também para a economia. Foram 635,4 bilhões de reais em estímulos, sendo que 325 bilhões de reais apenas para o auxílio emergencial — visto como propulsor da recuperação do consumo em 2020. O problema é que o benefício acabou em dezembro, a pandemia piorou e a vacinação engatinha no país. As reformas que poderiam ter sido feitas foram deixadas de lado e o governo, com a popularidade em queda, resolveu apostar tudo na volta do auxílio.
Novo Auxílio Emergencial
O ponto fulcral é que a situação fiscal, que já era preocupante antes da pandemia, ficou ainda mais frágil depois de tantos estímulos. “Não há benefício sem custo. E só vai ser possível avaliar o retorno que esses estímulos de fato trouxeram daqui a dois anos”, diz Alexandre Manoel, sócio da MZK Investimentos e ex-secretário do Ministério da Economia.
Por esse motivo, a equipe de Guedes, antes relutante em promover o retorno do benefício, passou a aceitá-lo, desde que fosse incluído dentro da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial, elaborada antes da pandemia. O projeto tem como medida principal a criação de gatilhos para conter gastos públicos. Ele prevê que, quando as despesas correntes do governo atingirem 95% das receitas em doze meses, estão cancelados reajustes de salários de servidores, concursos públicos e aumento de subsídios, por exemplo.
Nas últimas semanas, conseguir a aprovação dessa PEC no Congresso se tornou a prioridade máxima de Guedes. Com a desastrosa intervenção de Bolsonaro na economia com a troca de comando na Petrobras, a pauta liberal do governo foi posta em xeque, o que ampliou a sensação de risco para o Brasil. Os investidores estrangeiros que voltavam à B3 passaram a retirar dinheiro — fevereiro foi o primeiro mês de saldo negativo de investimento internacional desde julho de 2020 na bolsa. Os juros de longo prazo para os títulos do Tesouro Nacional dispararam. A saída de Guedes do governo, que não vinha sendo mais cogitada nos últimos meses, voltou a ser assunto entre banqueiros e empresários. “O ministro ficou numa posição difícil. Mas sair seria um desastre. A melhor alternativa é acalmar as coisas e continuar no cargo”, afirma Marcílio Marques Moreira, ex-ministro da Fazenda.
Nesse cenário, a equipe econômica passou a investir tudo em passar a PEC Emergencial de carona com a aprovação do auxílio e, com isso, recuperar credibilidade e resgatar a agenda de reformas. O jogo dos congressistas — interessados nos louros de conceder um benefício, mas resistentes a cortes de gastos —, porém, acabou sendo bastante duro e demonstrou a dificuldade do governo em manter o controle da situação. Apesar de robusta, a primeira versão do relatório da PEC, do senador Marcio Bittar (MDB) e acertada com o ministério, já deixava o auxílio de fora das contas do teto de gastos. Também foram excluídas economias imediatas desejadas por Guedes, como cancelar o pagamento do abono salarial e cortar o salário dos servidores em 25%, como forma de pagar o auxílio. Outras medidas foram sendo retiradas, desidratando o texto em aprovação no Congresso. Entre elas, a desvinculação de porcentagem mínima constitucional do Orçamento voltada para saúde e educação. O governo também queria um limite de recursos destinados ao auxílio de 30 bilhões de reais, que acabou ampliado para 44 bilhões de reais.
Bolsa Família
Em meio à votação no Senado, na quarta-feira 3, assessores da Casa contavam que os próprios congressistas apoiadores do governo tentavam tirar também o Bolsa Família da base de teto de gastos, num exemplo de fogo amigo. O objetivo era abrir espaço no Orçamento para emendas que destinassem recursos para suas bases eleitorais. Outra manobra, essa vinda da oposição, tentou votar o auxílio sem a PEC Emergencial, o que configuraria uma derrota clamorosa para Guedes. As duas tentativas foram debeladas. O texto aprovado no Senado, entretanto, ficou longe do ideal. Como o índice de 95% de despesas correntes deve ser alcançado só em 2025, levará anos para os gatilhos da PEC serem acionados e compensarem os gastos com o auxílio.
A década encerrada em 2020 registrou o menor crescimento anual do PIB em 120 anos de dados registrados: apenas 0,3%. Até a chamada década perdida, entre 1980 e 1990, foi melhor, com uma alta média de 1,6%. A pandemia impactou fortemente o resultado do último ano, mas é consenso que a grande razão para o ciclo negativo iniciado em 2015 é a péssima situação das contas públicas, que afugenta investimentos. Iniciar uma nova década piorando esse rombo não é nada auspicioso.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728