Nas próximas semanas, os eleitores escolherão, entre pouco mais de 15 000 candidatos, quem comandará as prefeituras dos 5 568 municípios brasileiros a partir de janeiro. Embora políticos, obviamente, odeiem perder, é possível que muitos dos derrotados em outubro concluam que se livraram de um grande abacaxi. Segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), 49% das cidades — um recorde — encerraram o ano passado quebradas. O rombo total é estimado em 16,2 bilhões de reais. Mesmo as que fecharam no azul não darão alento aos novos prefeitos, já que, na média, quase todo o orçamento é consumido por gastos correntes, como a manutenção de postos de saúde e escolas, e pelos salários dos servidores. “Os municípios enfrentam uma crise estrutural que se aprofundou nas últimas décadas”, afirma Paulo Ziulkoski, presidente da CNM. “Quem mais perde não são as prefeituras, mas os cidadãos.”
O problema data de 1988, quando a Constituição transferiu aos municípios responsabilidades antes a cargo da União e dos estados. Para arcar com essas obrigações, as prefeituras contam com algumas fontes de receita. A primeira é a arrecadação própria, oriunda de tributos que incidem sobre a economia local, como o Imposto sobre Serviços (ISS) e o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). O problema é que cerca de 1 600 cidades não arrecadam nem o mínimo necessário para manter a máquina pública, devido a sua pífia atividade econômica, segundo o Índice de Gestão Fiscal da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). “A autonomia fiscal é crítica em 55% das prefeituras”, diz Jonathas Goulart, gerente de estudos econômicos da Firjan. Além disso, nos últimos anos, os prefeitos assumiram novas responsabilidades, como a segurança pública, com a criação ou ampliação das guardas municipais, ante a incapacidade dos governadores de lidar com o assunto. “A liberdade de gerir o orçamento é cada vez menor”, diz Goulart. “Os municípios não conseguem elevar as receitas e não podem cortar gastos.” Antes da pandemia de covid-19, em média, 30% deles fechavam o ano no vermelho.
O coronavírus agravou a situação. Em 2020, para enfrentar a forte queda de arrecadação causada pelo fechamento da economia, o então presidente, Jair Bolsonaro, sancionou a Lei Complementar nº 173, que suspendeu o pagamento das dívidas de estados e municípios. Ao mesmo tempo, repassou 20 bilhões de reais às prefeituras, mediante algumas regras, como o congelamento de salários dos servidores. Com isso, os prefeitos fecharam 2021 com um superávit primário recorde de 95 bilhões de reais — e apenas 7% das cidades reportaram rombo nas contas. “Foi uma tempestade perfeita às avessas”, define Kleber Castro, assessor econômico da Frente Nacional de Prefeitos.
Era perfeita demais para durar. Desde 2022, quando a pandemia não preocupava mais e as leis para enfrentá-la perderam a validade, um tsunâmi de demandas afogou as contas municipais. Além de retomar os pagamentos à União, os prefeitos foram pressionados pelos servidores a reajustar os salários congelados por dois anos. A disparada da inflação encareceu o custeio das máquinas municipais. Para complicar, a arrecadação cresceu menos que o esperado. Por fim, medidas de Brasília, como o piso nacional de enfermagem, terminaram de quebrar as prefeituras. “Os novos gestores assumirão com as finanças numa situação sensível”, diz Castro.
O cenário vale para as capitais, que concentram a maior parte da economia e da arrecadação em seus estados. Seis delas — Boa Vista (RR), Campo Grande (MS), Cuiabá (MT), Florianópolis (SC), Natal (RN) e Teresina (PI) — receberam nota C do Tesouro Nacional. A nota funciona como um rating de crédito semelhante ao das agências de classificação de risco de dívida, e a escala vai de A+ (melhores pagadores) a D (piores). Municípios com nota B ou superior contam com a União como fiadora de empréstimos concedidos por bancos nacionais e estrangeiros. Embora poucas cidades consigam essa fiança, o total de dívidas municipais garantidas pelo governo federal somava 41 bilhões de reais no fim do ano passado. Um ponto crítico para determinar a nota é se a cidade é capaz de gerar alguma poupança própria. Nos últimos três anos, a prefeitura de Natal gastou 98% de sua receita corrente líquida, segundo o Tesouro Nacional. Em Campo Grande, essa proporção foi de 97%. Uma boa nota de crédito, contudo, não impede calotes. Em 2023, a União pagou 81 milhões de reais em dívidas atrasadas das cidades de Taubaté (SP) e Corumbá (MS).
Na outra ponta estão cidades como Vitória, que ganhou uma nota A+ do governo federal ao manter as contas em ordem. No último triênio, a capital capixaba consumiu apenas 75% de sua receita com gastos cotidianos. Maceió (AL) também ostenta a mesma nota. Consumindo 91% das receitas com despesas correntes, João Pessoa (PB) é outra capital com nota máxima do Tesouro e mostra que é possível gerir um orçamento apertado. Além de aumentar a arrecadação do IPTU em 40%, a prefeitura investiu na digitalização para melhorar a gestão. A folga no caixa permite a concessão de incentivos fiscais para atrair empresas de tecnologia. “Mesmo com a redução da alíquota do ISS do setor de 5% para 2%, houve um crescimento expressivo de arrecadação”, diz Cícero Lucena, prefeito de João Pessoa. Ser estratégico na escolha de projetos é crucial, mesmo para uma cidade que consome “apenas” 90% das receitas com gastos correntes, como Belo Horizonte — outra capital no topo do ranking do Tesouro. “Só buscamos recursos se os investimentos dão retorno para a cidade”, afirma o prefeito Fuad Noman.
A situação também é confortável para as duas maiores cidades do país. São Paulo, com nota A do Tesouro, ainda se beneficia da renegociação das dívidas conduzida por Fernando Haddad, quando foi prefeito, de 2013 a 2016. O montante devido caiu de 150 bilhões de reais, na época, para 22 bilhões em abril deste ano. Com 30 bilhões de reais em caixa, a prefeitura paulistana ostenta uma situação invejável — possuir uma dívida líquida negativa, isto é, ter mais dinheiro do que obrigações. É verdade que o atual prefeito, Ricardo Nunes, ajudou, ao repassar o Campo de Marte, aeroporto situado na Zona Norte da cidade, ao governo federal, em troca de uma redução de 25 bilhões de reais na dívida.
No Rio de Janeiro, em agosto, a agência de risco Fitch elevou a nota das dívidas de curto prazo para AA. Segundo a Fitch, a decisão “reflete a melhora da gestão fiscal e dos indicadores de liquidez nos últimos três anos, com caixa irrestrito superior aos passivos de curto prazo”. A prefeitura carioca fechou 2023 com superávit corrente de 2 bilhões de reais.
Por maior que seja a proeza para fazer o dinheiro render, os especialistas em finanças públicas afirmam que será cada vez mais difícil fazer tudo com recursos próprios e repasses da União e dos estados. “O orçamento municipal deve ser uma alavanca de outros investimentos, como os privados, seja por meio de parcerias ou concessões”, diz Gustavo Morelli, diretor da consultoria Macroplan. É um conselho salutar para que os novos prefeitos não se arrependam de ter vencido as eleições.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912