Um choque duplo tem alimentado uma inflação global como não se via fazia décadas. De um lado, estão os reflexos econômicos da pandemia de Covid-19, que ainda causam descompassos de produção, consumo e gargalos logísticos por todo o mundo. Do outro, a invasão da Ucrânia pela Rússia e seu impacto nos preços das commodities que os dois países exportam. O resultado é uma corrosão do poder de compra que atingiu a economia global que, pelo menos para uma geração, é inédita. Tanto que até mesmo nos Estados Unidos, depois de constatado que o aumento de custos não seria temporário como projetava anteriormente, o Federal Reserve, o banco central americano, deu início neste ano a um aumento de juros, para tentar controlar a inflação que já chega a 8,5% em doze meses. A dificuldade para domar esse dragão é tamanha que os investidores de Wall Street começam a projetar cenários sombrios. Um relatório publicado no domingo de Páscoa, pelo Goldman Sachs, estima ser de 35% a probabilidade de haver uma recessão na maior economia do mundo dentro dos próximos dois anos.
Em países com o amargo histórico de conviver com disparadas nos preços e descontrole econômico, como o Brasil, as perspectivas são ainda mais preocupantes. Célebre economista liberal brasileiro, Roberto Campos (1917-2001) definiu a inflação como “um monstro brutal e cruel que tortura particularmente os assalariados”. Agora, no Brasil, é seu neto e presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que tem percebido na prática a veracidade dessas palavras. É dele a missão de preservar a moeda contra o aumento dos preços — e ela não tem sido bem-sucedida.
A batalha para deixar a inflação anual próxima da meta preestabelecida pelo próprio BC foi perdida em 2021, está comprometida para 2022 — segundo a instituição, há 88% de possibilidade de a inflação ficar acima do limite de 5%, já com margem de tolerância — e agora todos os esforços estão direcionados para evitar uma nova derrota em 2023. Para o próximo ano, o centro da meta é de 3,25%, com tolerância de 1,5 ponto, mas muitos no mercado já estão projetando alta acima disso. “Fomos submetidos a um forte choque, mas é claro que o BC se atrasou. Essa análise não envolve um julgamento, até porque os sinais mostravam ser temporários, mas o atraso implicou em perder o controle da inflação. Passamos a ver o repasse de preços internacionais impactar o Brasil”, avalia Alexandre Schwartsman, ex-diretor do BC.
Desde que o regime de metas foi instituído com o Plano Real, o BC falhou três vezes seguidas apenas entre 2001 e 2003. Repetir o fracasso joga contra a credibilidade conquistada nas últimas décadas. Em doze meses até março, a inflação brasileira está acumulada em 11,3%, e a persistência das pressões assustou o próprio Campos Neto. “A inflação do índice mais recente foi uma surpresa”, declarou, ao registrar que a alta de março foi a maior para o mês em 28 anos, ou seja, desde o início do Plano Real. “Essa surpresa se fez em vários países e a realidade é que a nossa inflação está muito alta e os núcleos estão muito altos.”
O aumento de preços é especialmente custoso para o presidente Jair Bolsonaro, que busca a reeleição. Aliados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Sila, inclusive, recomendam que o tópico seja um dos principais focos de crítica à gestão atual durante a campanha eleitoral. “O BC está sendo obrigado a aumentar as taxas de juros, contraindo o crescimento, para controlar a inflação, o que tem um alto custo político para o atual governo”, diz Carlos Thadeu de Freitas Gomes, outro ex-diretor da instituição.
A estratégia é dura, mas correta, uma vez que a inflação já prejudica a população. Com o dinheiro no bolso valendo menos, o brasileiro está cortando gastos. Seis em cada dez pessoas, por exemplo, já mudaram os hábitos de consumo, segundo um levantamento encomendado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e divulgado na quarta-feira 20. É uma realidade que ajuda a explicar o motivo do setor de serviços, o que mais emprega no país, estar em regressão. Em janeiro e fevereiro deste ano, ele registrou queda de 0,1% e de 0,2%, de acordo com o IBGE.
O empobrecimento decorrente da inflação também se reflete na queda do salário e no aumento das dívidas das famílias. Em fevereiro, a renda média mensal dos trabalhadores estava em 2 511 reais, 8,8% abaixo do registrado no mesmo período do ano passado. Já o endividamento em março atingia 77,5% das famílias brasileiras, segundo a Confederação Brasileira dos Serviços (CNS). Trata-se de um recorde em doze anos. Desse total, 27% não conseguem pagar as contas, levando também a um nível de inadimplência recorde, justamente no momento de alta da taxa de juros. Nesse cenário, a curto e médio prazo, o futuro da economia do país começa a ser desenhado como difícil e pouco auspicioso.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786