A gestão da rede de telecomunicações usada pela Aeronáutica para a defesa, vigilância e controle do tráfego aéreo pode passar para a iniciativa privada em breve. O governo pretende quebrar um paradigma ao repassar a administração do sistema por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP), a primeira da União. A Aeronáutica reconhece que há preocupação com a proteção dos dados e a segurança nacional, mas diz que criará mecanismos e contingências para se proteger.
O tema é polêmico, mas restrições orçamentárias e legais levaram o Comando da Aeronáutica a defender o modelo aberto. Dezessete empresas participaram da audiência pública, duas com maior interesse: o grupo mexicano Claro/Embratel e a americana Harris. As companhias apresentaram uma proposta que pode servir de base para o edital da licitação, que será lançado no fim deste semestre.
O contrato deve envolver 3,4 bilhões de reais em investimentos, operação e manutenção do sistema e durar ao menos 25 anos. No período, estão previstos três ciclos de atualização tecnológica. A expectativa da Aeronáutica é reduzir os custos com a gestão do sistema em 30%.
“A solução proposta está alinhada à demanda por otimização e racionalização da máquina pública”, cita o comando aeronáutico na documentação do projeto, que menciona também “pouca flexibilidade e agilidade” impostos pela legislação aos gestores públicos.
O chefe da divisão técnica da Comissão de Implantação do Sistema de Controle do Espaço Aéreo, coronel André Jansen, explicou que a ideia é contratar uma empresa que será integralmente responsável pelo projeto, instalação, operação, gestão e manutenção da rede de telecomunicações. O projeto deve consumir 1,55 bilhão de reais em investimentos e 1,92 bilhão em custos operacionais.
A PPP prevê a criação de uma empresa exclusiva para a gestão da rede da Aeronáutica, com 100% de capital privado. O modelo permite participação de companhias individualmente ou em consórcio. Nessa empresa, haverá representantes da Aeronáutica no comando da gestão da rede e da segurança da informação.
Ainda que a gestão da rede de comunicações seja repassada a uma empresa privada, o controle do tráfego aéreo, que inclui voos comerciais e atividades de defesa, continuará nas mãos dos militares.
“Pretendemos ter um alívio nas contas públicas e previsibilidade dos gastos, sem nos preocupar com variações orçamentárias, podendo redirecionar esforços para nossa atividade-fim, que é o controle do espaço aéreo”, explicou o coronel.
Ao centralizar toda a rede de comunicações em uma só empresa, a Aeronáutica acredita que será possível atender mais facilmente à expansão do tráfego aéreo nacional e internacional. No futuro, esses sistemas vão exigir a transmissão de grande quantidade de dados em alta velocidade e de forma automática, dispensando contatos de voz entre pilotos e controladores de voo.
As atividades da empresa serão pagas mensalmente pela Aeronáutica. Está em estudo a possibilidade de que a companhia possa vender capacidade ociosa das redes para companhias aéreas, aeroportos, serviços de meteorologia e à comunidade local. Nesse caso, as receitas obtidas serão usadas para abater a contrapartida mensal paga pela União. Nos Estados Unidos e na Europa, segundo a Aeronáutica, projetos similares proporcionaram um alívio entre 5% e 10% no valor integral das parcelas.
Licitação
Atualmente, a Aeronáutica tem 68 diferentes contratos de serviço de telecomunicações entre oito órgãos, como o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) e os Centros Integrados de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta). A rede usa satélites, redes de fibra óptica e micro-ondas, além de instalações como estações terrestres. “Isso nos causa desgaste, gastos maiores e dificuldades em identificar necessidades e atualizar contratos”, diz Jansen.
A Aeronáutica se prepara para abrir a consulta pública e submetê-la ao aval do Tribunal de Contas da União (TCU). A ideia é realizar a licitação ainda até junho e contratar a empresa no início do segundo semestre.
Preocupação
A transferência da gestão dos sistemas de comunicação para uma empresa privada traz uma preocupação para a Aeronáutica. Segundo o chefe da divisão técnica da Comissão de Implantação do Sistema de Controle do Espaço Aéreo, coronel André Jansen, o controle de acesso e o estabelecimento de uma forte política de segurança da informação são prioridade para os militares.
Para reforçar a segurança, o governo vai exigir que o parceiro privado crie um centro de gerenciamento de redes e um centro específico para o gerenciamento da segurança da informação. Nesses locais, haverá uma equipe de profissionais dedicados 24 horas por dia, sete dias por semana, para monitorar tentativas de invasão, malware, vírus e outras ameaças cibernéticas.
“Esse é um tema que preocupa a todos”, reconheceu Jansen. “Vamos migrar para um sistema baseado em redes IP, nos quais circulam voz e dados. Temos que aceitar essa preocupação, pois é um outro mundo.”
O contrato também vai prever o funcionamento em situações atípicas. Exemplo: se o Brasil entrar em guerra com algum outro país, e a empresa responsável pelo sistema pertencer a esse país. “É algo que tem de ser pensado e bastante explorado. Seria uma contingência em cenário atípico, em um estado de exceção”, afirmou. Ele, no entanto, diz que não haverá risco, porque a infraestrutura de satélites, que a Aeronáutica já utiliza, não será cedida para o parceiro privado. Hoje, ela serve como um seguro, caso as redes terrestres deixem de funcionar.
A presença de empresas privadas nos sistemas de comunicação da Aeronáutica pode parecer uma novidade, mas isso já é uma realidade, explica Jansen. “Atualmente, as redes que usamos não pertencem à Aeronáutica, mas às próprias empresas prestadoras de serviços”, disse. Segundo o coronel, isso não significa que os sistemas são vulneráveis. “Temos mecanismos para proteger essas informações e usamos criptografia para que esses dados não vazem.”
Riscos
O professor de navegação aérea da Universidade de São Paulo (USP), Jorge Bidinotto, concorda que a exposição aos riscos não mudará com o novo modelo. “Com ou sem PPP, os riscos que já existem e vão continuar existindo.” Bidinotto ressalta que a transferência da gestão exige minucioso trabalho de amparo legal. “É um acordo que precisa ser muito bem amarrado. Se o contrato tiver brechas, seria temerário para a segurança da informação”, diz.
O professor cita que outro risco associado ao contrato é a chance de aumento de custos, o que poderia chegar até o consumidor. Ele explica que a taxa de embarque cobrada dos passageiros em voos comerciais serve para bancar diversos custos, como serviços e até o salário dos controladores. “Isso poderia aumentar com o tempo”.
Embratel e Harris foram procuradas, mas não quiseram se manifestar a respeito do projeto.
(Com Estadão Conteúdo)