Donald Trump, eleito para um segundo mandato não consecutivo como presidente dos Estados Unidos, tem planos de erguer uma muralha ao redor da maior economia mundial. A muralha pode ser real, quando se trata de uma barreira física para bloquear a entrada de imigrantes no país pela fronteira com o México, ou metafórica, quando se refere às promessas de aumento de tarifas de importação e de criação de obstáculos para impedir empresas e investimentos de deixarem os Estados Unidos. Os riscos para a economia como um todo são imensos, pois estamos falando do país que emite a principal moeda de reserva internacional, o dólar, e cujo mercado consumidor é o mais conectado ao comércio global — os americanos são os maiores importadores do planeta, comprando mais de 3,8 trilhões de dólares em bens e serviços de fora por ano. Se Trump cumprir todas as suas promessas de campanha em economia, a tendência é o mundo inteiro perder. Alguns países com características específicas, porém, se souberem navegar com sabedoria e pragmatismo as incertezas que vêm pela frente, podem perder menos e até, em alguns aspectos, colher benefícios da nova realidade. O Brasil pode ser um deles? Veremos.
“Inflacionário” tem sido o adjetivo mais usado por economistas para qualificar o efeito esperado das políticas econômicas pretendidas por Trump. O presidente eleito garante que o tripé formado por deportação em massa de imigrantes; redução de impostos e restrições regulatórias (ambientais, por exemplo) para empresas; e aplicação de tarifas de importação turbinadas sobre todos os países, principalmente a China, é capaz de trazer prosperidade aos americanos.
Deportar 1,3 milhão de imigrantes que vivem e trabalham no país sem visto, no entanto, vai derrubar a oferta de mão de obra em funções que a maioria dos americanos não quer preencher. Em um primeiro momento, os salários para essas vagas podem aumentar, e isso vai puxar os preços de produtos e serviços para cima, gerando inflação. Os incentivos às empresas americanas, da maneira como Trump vem anunciando, também podem ter resultados ambíguos. A flexibilização de regras ambientais, por exemplo, pode, em um primeiro momento, aumentar a vantagem competitiva de algumas empresas locais frente a suas concorrentes europeias, mas tende a perpetuar a dependência do país por combustíveis fósseis, entre outros problemas de longo prazo. “Quanto à redução dos impostos corporativos, isso pode incentivar as contratações em pequenas e médias empresas, que representam o alicerce do emprego nos Estados Unidos, mas gera o risco de aumentar a dívida pública sem necessariamente melhorar a produtividade em todos os setores”, afirma John Plassard, diretor de investimentos e mercados financeiros do grupo financeiro suíço Mirabaud.
O fato de Trump ter prometido diminuição de impostos sem a contrapartida de cortar gastos públicos acendeu um alerta no Federal Reserve (Fed), o banco central americano. O presidente da instituição, Jerome Powell, disse que a trajetória do déficit fiscal e o endividamento do país já estão em níveis ameaçadores. Indicado para o cargo no primeiro governo Trump, Powell afirmou que comandará o Fed até o fim do seu mandato, que termina em maio de 2026, mesmo que sofra pressões para renunciar ou para adotar uma política de juros mais frouxa. Trump expôs diversas vezes na campanha sua intenção de exercer influência sobre o Fed para conseguir taxas de juros mais baixas. A necessidade de mantê-las altas para conter a inflação, na contramão do que quer o presidente eleito, porém, será ainda maior diante da possibilidade de aumentos generalizados nas tarifas de importação.
Trump prometeu impor uma tarifa mínima de 60% sobre produtos chineses, de até 25% sobre importações do México e de 10% a 20% para qualquer outro país. Segundo ele, o que o Estado vai arrecadar a mais com as taxas de importação vai compensar os cortes de impostos. No entanto, a conta não só não fecha, como a arrecadação via balança comercial tende a cair com o tempo, conforme empresas e consumidores passem a substituir itens importados mais caros por outros produzidos internamente ou que são menos taxados. Na realidade, o efeito mais imediato de uma elevação súbita nas tarifas em um país tão conectado com o comércio global será o aumento generalizado de preços — ou seja, inflação mais alta, que irá corroer o poder de compra da população e encarecer os negócios.
A pressão inflacionária resultante do tripé deportação/desajuste fiscal/tarifas exigirá do Fed a elevação das taxas de juros, o que, combinado com retenção de capital em território americano devido a incentivos corporativos, deve aumentar a cotação do dólar. Uma consequência será os bancos centrais mundo afora, especialmente em economias emergentes como o Brasil, se verem forçados a elevar ainda mais suas próprias taxas de juros. A saída, para esses países, é atacar fatores internos que contribuem para a alta dos juros. No caso do Brasil, realizando cortes estruturais nos gastos públicos.
No comércio, o dólar mais forte pode favorecer as exportações brasileiras, mesmo em um cenário de tarifas globais mais altas, se setores como agronegócio e mineração não forem taxados em excesso. A primeira fase da guerra tarifária entre Estados Unidos e China, iniciada no primeiro mandato de Trump e mantida por Joe Biden, teve o efeito de incrementar as vendas do Brasil para a China em quase 120% e, para os Estados Unidos, em 37% (veja o gráfico ao lado). No primeiro caso, isso se deveu em grande parte a um choque de demanda causado pela retaliação da China às tarifas e barreiras não alfandegárias impostas pelo governo americano aos seus produtos e serviços.
Desta vez será diferente. A guerra comercial no primeiro governo Trump atingiu apenas 14% das importações americanas. A promessa, a partir de janeiro de 2025, é alcançar 100% do que o país compra do exterior. E a China não tem mais muita margem para retaliação, pois já reduziu bastante sua importação de produtos americanos nos últimos anos — em especial commodities agrícolas. Outro fator de risco é a economia da China, que já está em desaceleração, ser impactada de tal forma pelas tarifas de Trump que leve a uma retração na demanda por produtos brasileiros. Contra isso, os chineses passaram os últimos anos diversificando parceiros comerciais, exportando mais para outros países, de forma a reduzir sua dependência do mercado americano.
A boa notícia é que o Brasil não está no topo da lista de prioridades da guerra tarifária de Trump. O seu foco declarado, a princípio, são os países com os quais os Estados Unidos têm déficit na balança comercial. Isso inclui, além da China, o México, o Vietnã, a Alemanha e muitos outros. Com o Brasil, ao contrário, o saldo comercial é positivo para os americanos desde 2009. O mais provável, portanto, é que as exportações brasileiras não sejam as mais afetadas diretamente por novas tarifas, a não ser em setores específicos que Trump queira proteger. Em março de 2018, por exemplo, ele impôs uma sobretaxa à importação de aço e alumínio, atingindo em cheio os produtores brasileiros. Alguns meses depois, o Brasil (então sob a presidência de Michel Temer) foi beneficiado, junto com outros países, com cotas de isenção da nova tarifa sobre o aço — exceção que sofreu idas e vindas até o fim do mandato de Trump, em 2020, ao sabor das necessidades da indústria americana.
Esse episódio deixa duas lições para o atual governo brasileiro. A primeira é que Trump, apesar da retórica protecionista e nacionalista, é acima de tudo pró-business. Ele pretende usar as tarifas para “reequilibrar” o comércio com outros países, para incentivar a produção doméstica, para desestimular empresas americanas de se estabelecer no exterior e até mesmo, conforme já declarou, como instrumento geopolítico, punindo países que atuem contra os interesses dos Estados Unidos no exterior. Mas ele não pensará duas vezes antes de derrubar ou abrir exceções para as tarifas que estiverem prejudicando as empresas do seu país. Isso abre oportunidade para os negociadores brasileiros adotarem uma postura pragmática com o novo governo dos Estados Unidos no comércio bilateral.
A segunda lição é que, para construir essa relação pragmática com Trump, será preciso evitar que ele veja o governo brasileiro como um adversário. Essa é a parte mais difícil. “Alguns aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro com clara influência sobre Trump e sobre encarregados de sua política externa tentam promover a narrativa de que o Brasil é tão ruim quanto a Venezuela, sugerindo que, sob Lula, o país reprime opositores e a liberdade de expressão”, diz o analista político americano Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly. Entre as pessoas que tendem a ver Lula negativamente, por ter uma concepção da América Latina sustentada na divisão entre esquerda e direita, está o senador Marco Rubio, nomeado por Trump para o cargo de secretário de Estado, o equivalente a chanceler. O melhor a fazer seria o governo brasileiro evitar declarações que deem a Trump a chance de colocá-lo na lista de inimigos. Não ajuda nesse propósito xingar aliados do presidente eleito, como fez a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, com o bilionário Elon Musk dias antes da reunião de cúpula do G20 no Rio, em novembro. Por outro lado, avalia Winter, “Trump é um negociador e está focado naquilo que ele considera ser o melhor para os interesses dos Estados Unidos”. Se Lula souber jogar esse jogo, o Brasil pode escapar de ficar entre os países mais prejudicados pela muralha de Trump.
Publicado em VEJA, novembro de 2024, edição VEJA Negócios nº 8