A disputa pelo bilionário mercado de medição de carbono
Dezenas de milhares de empresas mundo afora precisam correr para medir e reportar suas emissões e empresas se posicionam neste mercado que tem muito a avançar
Medir as emissões de carbono da operação virou prioridade para cerca de 400 empresas no Canadá, mais de 400 na China, 1 000 no Japão, outras 10 000 nos Estados Unidos e nada menos que 50 000 na União Europeia. Tudo isso por causa de novas regras aprovadas desde 2023 por governos e bolsas de valores. As regulações variam muito, na forma de enquadrar as companhias (por receita, setor, localização, capital aberto ou fechado e outros critérios), no grau de detalhamento exigido (com ou sem riscos climáticos, com ou sem emissões de fornecedores e clientes) e no prazo (parte das mudanças já vale nos relatórios que começam a ser feitos daqui a alguns meses, para publicação em 2025. A fase de transição na UE vai até 2029 e, nos EUA, até 2033). Muitas empresas brasileiras precisam entrar nesse esforço, por um motivo ou outro — por exportar para esses lugares, ser fornecedoras de companhias estrangeiras, contrair crédito ou ter filiais no exterior. A chacoalhada regulatória gerou muitas dúvidas, reclamações e novos esforços de lobby das companhias afetadas. Gerou também um mercado quentíssimo.
Acontece que medir as emissões de carbono de uma organização, definir metas de corte realistas e apresentar tudo isso num relatório auditável, no formato correto, normalmente exige a contratação de um prestador do serviço, porque dá muito trabalho. De qual fonte vem a energia que a empresa compra? Faz diferença se a frota é própria ou terceirizada? As filiais têm práticas diferentes entre si? Como unificar dados incompatíveis vindos dos fornecedores? Investimentos feitos resultaram em atividades poluentes em outras empresas?
Fazer essas contas todas pode significar mais do que atender a exigências regulatórias e demandas de consumidores conscientes. Pode representar também fonte nova de receitas.
Empresas que capturam carbono da atmosfera ou ao menos emitam menos que a média de seus setores podem pensar em vender créditos de carbono (ou ativos similares, criados em mercados regulados de carbono — como o descrito no Projeto de Lei 182, aguardando aprovação no Senado brasileiro desde dezembro de 2023). A fabricante de carros elétricos Tesla faturou 1,8 bilhão de dólares em 2023 na Califórnia e passou a ter 145 milhões de dólares em 2024 na Coreia do Sul em ativos de carbono para vender (nesses mercados regulados, as empresas mais poluidoras precisam comprar os ativos de carbono das empresas mais limpas). Tudo porque a empresa colabora com a transição para uma economia verde e prova isso com números auditáveis.
O grau de complexidade envolvido nessas contas — reunir um volume enorme de dados dispersos por fontes variadas, transformá-los em informação padronizada, coerente e útil, tomar decisões a partir do conjunto — sugere que isso é trabalho para software especializado. “De um lado, temos avanços tecnológicos radicais em poder de computação, capacidade de sensores e inteligência artificial. De outro, temos a sociedade diante de uma transformação urgente rumo ao “net zero” (em emissões de carbono)”, afirma a analista Nelly Tranaas, do banco de investimentos britânico GP Bullhound. “Há software poderoso para mostrar o que realmente importa e apoiar ações de impacto e em escala.”
O banco já investiu em empresas digitais importantes em outros segmentos, como Discord, Revolut, Slack e Spotify, e agora tem interesse na nova área, que alguns chamam de “contabilidade de carbono”. O paralelo ajuda a entender as altas expectativas com software especializado em medição de emissões. Na contabilidade financeira, esse avanço tecnológico, dos anos 1980 em diante, reduziu riscos de erros e fraudes, criou novas opções de análise do negócio e melhorou a qualidade das projeções. Espera-se agora que o mesmo ocorra com o esforço de descarbonização das empresas. Por essa expectativa, GP Bullhound, BlackRock, General Atlantic, GIC e outros investidores aportaram meio bilhão de dólares na startup francesa EcoVadis desde 2022, o maior negócio já feito no segmento.
Empreendedores em vários países detectaram a oportunidade. Entre as estrelas do setor estão a brasileira Maria Carolina Fujihara, cofundadora e presidente da startup americana Sinai, em São Francisco, e a búlgara Lubomila Jordanova, cofundadora e presidente da startup alemã Plan A, em Berlim. As duas empresas foram criadas em 2017 e já conquistaram listas impressionantes de clientes. A Sinai, que recebeu 22 milhões de dólares em 2022 da Energize Capital, já atendeu empresas como ArcelorMittal, Harley-Davidson e Natura, entre outras.
A Plan A já atendeu mais de mil clientes, incluindo BMW, Deutsche Bank e Visa. Em 2023, recebeu investimento de 27 milhões de dólares, numa rodada liderada pelo fundo americano Lightspeed. Sua CEO considera que o mercado chega agora a um primeiro momento de depuração. Ou seja: terreno instável à frente. Numa avaliação da consultoria Gartner feita neste ano, “o mercado de contabilidade e gestão de carbono é fragmentado e imaturo, o que cria incerteza e risco para os compradores (clientes).” Isso indica, também, grandes oportunidades ainda abertas.
“Passamos por uma fase de expansão forte, com o que eu chamo de ‘empresas de carbono 1.0’. Foi um momento de errar e aprender”, disse Lubomila a VEJA NEGÓCIOS. “Houve muito investimento, que agora está no período de amadurecimento e ganho de escala. Acredito que vamos ver um reajuste, porque há mais de 100 empresas atuando nesse segmento.” Mas isso não significa, na visão da empreendedora, que o mercado vá encolher. “Espero que surja demanda por startups ainda mais especializadas. Conforme a descarbonização for se integrando às decisões financeiras e as grandes empresas adotarem um novo conjunto de métricas de desempenho, vamos precisar de ainda mais conhecimento de nicho”, afirma ela.
Outras consultorias parecem confirmar a análise de Lubomila. A britânica Verdantix contou 88 empresas relevantes disputando o setor em 2024. A PwC estima que o pico de investimentos em “inteligência de dados em gases de efeito estufa” tenha ocorrido em 2021, mas com movimentação ainda em andamento. Segundo a PwC, o investimento no segmento passou de 7 bilhões de dólares nos últimos três anos, mais do que o feito nos sete anos anteriores.
Nem todos os empreendedores se moveram em sincronia com o mercado. A avalanche de regulações ocorreu nos últimos anos, mas a tendência já se anunciava havia muito mais tempo, desde o primeiro compromisso internacional de enfrentamento do efeito estufa, o Protocolo de Kyoto, de 1997. Atentos à crise climática, quatro amigos de Belo Horizonte criaram, em 2006, a WayCarbon. A então startup nasceu como consultoria, passou por altos e baixos do mercado e evoluiu no início dos anos 2010 para se tornar uma empresa de software de descarbonização. Ainda assim, estava adiantada em relação às necessidades do mercado, e não no bom sentido. “Em 2014, estávamos à frente, mas com um timing ruim. Em vez de atender a uma demanda existente, tínhamos um produto que tentávamos encaixar no mercado”, diz Henrique Pereira, diretor e um dos quatro cofundadores da empresa.
Mas a urgência climática piorou, veio um novo compromisso internacional, o Acordo de Paris, em 2015, e a fase da avalanche regulatória começou a se aproximar. Em 2022, o Grupo Santander comprou 80% da WayCarbon, por valor não revelado. Hoje, a empresa aparece entre as quinze prestadoras de serviços mais relevantes do mundo em sua área, segundo pesquisa feita pela consultoria Verdantix, e seu software é usado em 46 países.
Além da natural competição entre empresas menores, por clientes, investimentos e reconhecimento, esses empreendedores enfrentam a concorrência de gigantes. As grandes desenvolvedoras de software corporativo perceberam a tendência e se posicionaram: IBM, Microsoft, Salesforce e SAP, entre outras, oferecem produtos específicos para suas clientes lidarem com contabilidade do carbono. Até a Nasdaq resolveu entrar nesse mercado. Diante da tarefa à frente, quanto mais atenção, melhor. No enfrentamento da crise climática, cortar emissões de carbono é como achar ouro. Para chegar a esse resultado, as empresas precisam antes comprar as pás e picaretas — e vão cobrar dos desenvolvedores de software ferramentas cada vez mais poderosas.
Publicado em VEJA, agosto de 2024, edição VEJA Negócios nº 5