No início dos anos 1990, quando o Brasil buscava recuperação política e econômica na esteira do impeachment do presidente Collor, um capricho de seu vice e sucessor ajudou a moldar o conceito de carro popular no país. Itamar Franco (1930-2011) era um entusiasta do Fusca e insistiu que a Volkswagen voltasse a produzir o clássico carrinho, que havia saído de linha seis anos antes. Foi atendido ao oferecer a redução da alíquota do imposto sobre produtos industrializados (IPI), de 20% para simbólico 0,1%. Itamar, então, teve de expandir o benefício tributário para veículos de menor cilindrada e, como consequência, as ruas foram tomadas por versões 1.0 do Fiat Uno e do Volkswagen Gol. A onda perduraria por mais duas décadas, passando por modelos como Ford Ka e Chevrolet Celta, entre tantos outros. No cenário atual, porém, os carros populares — no sentido de preços acessíveis às pessoas — estão em processo de extinção.
Vinte anos atrás, os modelos de motor 1.0 respondiam por cerca de 70% das vendas. Em 2020, ano em que a pandemia passou como um trator por cima de tudo, a participação foi de apenas 12,7%, de acordo com a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). O carro mais barato do país hoje é o Mobi, cujo preço do modelo básico subiu de 38 000 reais em janeiro para 44 000 em julho, uma variação de 15,8%. Ainda que a realidade dos carros 1.0 seja diferente do que era há duas décadas (hoje em dia existem até mesmo versões turbo, com 180 cavalos de potência), o fato de vários modelos do tipo já rondarem a casa dos 100 000 reais assusta o consumidor.
É verdade que veículos 1.0 começaram a ser equipados com tecnologia embarcada em carros mais caros, mas o que moldou mesmo o novo cenário foi a quebra da cadeia de suprimentos, em especial dos semicondutores (chips), que hoje estão presentes em quase tudo, do freio ao sistema de injeção. Além disso, insumos como aço, vidro e plástico tiveram aumento estratosférico de custo, que foi repassado ao produto final. Para completar, a demanda do consumidor por ar-condicionado, câmbio automático e central multimídia tem colaborado para a acelerada de preços, e há ainda o fator legislação, que fez com que as montadoras gastassem mais com dispositivos de controle de emissão de gases de efeito estufa e com aparatos de segurança, como airbags e luzes de rodagem diurna. Tudo isso acabou contribuindo para a formação do novo patamar de preços.
A mudança do gosto dos brasileiros também mexeu com o mercado, fazendo as montadoras apostarem nos utilitários esportivos (SUVs), que já respondem por mais de 40% das vendas. A nova ordem, portanto, é priorizar os modelos com maior margem de lucro e, com isso, tirar de circulação os mais simples. A carga tributária brasileira, uma das maiores do mundo, também não ajuda na composição do preço, assim como o contexto político. “Houve uma profunda crise em 2016, na época do impeachment de Dilma Rousseff, mas vínhamos em recuperação até surgir a Covid-19”, explica Flávio Padovan, sócio da MRD Consulting, com experiência no comando de empresas como Ford e Volkswagen. Segundo Padovan, as incertezas políticas, em meio a um contexto de pandemia, tornam o cenário ainda mais desafiador.
Os carros zero-quilômetro estão, portanto, virando artigo de luxo e o mercado de seminovos tenta preencher esse vácuo. No primeiro semestre, 7,3 milhões de veículos usados foram vendidos no país — uma alta de 63% em relação ao mesmo período do ano anterior. Por outro lado, esses usados também carregam aumento de preço devido à escassez de oferta — há veículos 2019 sendo vendidos hoje pelo mesmo valor nominal pelo qual foram comprados dois anos atrás. A pandemia está arrefecendo e o mercado sempre se adapta, mas o sinal de alerta está ligado. “O brasileiro não tem renda para suportar tanto aumento de preço”, diz Paulo Cardamone, CEO da Bright Consulting. “Existe um limite e estamos chegando perto dele.” Em outras palavras, se o cenário não mudar logo, haverá uma crise estrutural de mercado.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752