As empresas demoram décadas para construir uma boa reputação, mas bastam apenas alguns minutos para destruí-las. A velha máxima do mundo corporativo traduz a eletrizante trajetória da grife americana de roupas Abercrombie. Fundada em 1892, em Nova York, ela ficaria conhecida anos depois, quando personalidades como o presidente americano John F. Kennedy, a atriz Greta Garbo e o escritor Ernest Hemingway, entre muitas outras, passaram a exibir com orgulho o famoso alce que se tornaria símbolo da marca. No início do século XXI, a Abercrombie deixaria o universo das celebridades de meia-idade para seduzir os jovens com uma estratégia para lá de esquisita. Em vez de vendedores convencionais, a rede contratou modelos sarados que atendiam a clientela sem camisa, como um chamariz para atrair adolescentes. A ousadia funcionou, as filas avolumaram-se nas portas das lojas e muito dinheiro jorrou dos caixas da companhia. Até que uma estupidez poria tudo a perder. Em 2013, Mike Jeffries, então presidente da Abercrombie, disse que apenas “gente magra e bonita” era bem-vinda e deveria comprar seus produtos. Em questão de minutos, a centenária reputação seria irremediavelmente jogada no lixo.
O preço está sendo cobrado agora, quase uma década depois da tresloucada afirmação. A Abercrombie anunciou há alguns dias seu mais drástico plano de reestruturação — palavra que, no jargão corporativo, não é outra coisa a não ser corte de custos. A empresa fechará, até o fim de janeiro, as quatro maiores lojas próprias, sendo duas na Alemanha (Düsseldorf e Munique), uma na França (Paris) e uma na Inglaterra (Londres). Outros endereços importantes na Europa e no Japão deverão ser encerrados quando seus respectivos aluguéis expirarem.
Segundo cálculos do mercado, as lojas extintas representam 10% de toda a área física disponível para vendas. O novo foco da Abercrombie serão as unidades menores, sem o estardalhaço do passado — no início da década, alguns estabelecimentos simulavam baladas, com luzes piscantes que brilhavam ao ritmo do som altíssimo —, e mais distantes das áreas turísticas tradicionais. Em outras palavras: a empresa quer atrair o público mais popular, que vive nas franjas das cidades. O conjunto de iniciativas significará uma economia imediata de 8 milhões de dólares, dinheiro que compensará a queda de 5% das vendas no terceiro trimestre do ano fiscal encerrado em outubro.
A ascensão e queda de uma das grifes mais tradicionais dos Estados Unidos exemplifica como o descuido com a reputação pode ser devastador para as grandes empresas. Mike Jeffries, o presidente falastrão, foi afastado do cargo em 2014, mas os estragos estavam feitos. A reação à sandice foi o surgimento de um movimento nas redes sociais que pregou durante anos o boicote à marca e a distribuição de roupas que ostentassem o inconfundível alce a moradores de rua. O levante dos “feios e gordos”, a turma que não se enquadrava no estereótipo que o executivo queria ver em suas lojas, fez a Abercrombie perder fatias importantes de mercado. “Para complicar a situação, a nova geração é mais inclusiva do que qualquer outra na história”, diz Eduardo Tancinsky, consultor especializado em marcas. “No mundo competitivo da moda, só as marcas exclusivíssimas podem abrir mão de potenciais compradores. Chamar eventuais clientes de feios não foi apenas uma agressão, mas um contrassenso do ponto de vista de marketing.”
Nos últimos meses, para piorar, a Abercrombie enfrentou uma tempestade perfeita. Somaram-se aos problemas de imagem a crise imposta pela pandemia e os novos desafios do varejo físico, afetado pelo avanço do comércio eletrônico. Outras marcas icônicas também sofrem com as mudanças do mercado e do padrão de consumo. A grife Banana Republic foi uma das mais amadas nos anos 1990, mas perdeu público de uns tempos para cá. Sua controladora, a Gap, informou recentemente que fechará 130 lojas Banana Republic nos Estados Unidos até 2023 — é o corte mais radical da história da empresa. Já há até quem duvide da capacidade de sobrevivência da outrora inabalável marca.
O mundo das grifes parece ter virado do avesso na nova era do consumo. Um dos mitos empresariais do século XXI, a grife californiana de acessórios e roupas íntimas Victoria’s Secret viu sua participação de mercado cair de 34%, uma década atrás, para 15%, atualmente. Assim como a Abercrombie, a empresa enfrenta uma crise de imagem. A estética sexualizada, consagrada pelas modelos lindas e esguias, parece fora de contexto em um mundo marcado pelo ativismo feminino. Há inúmeros casos. A sueca H&M, uma das maiores empresas do varejo de roupas do mundo, avisou que eliminará 250 lojas, de um total de 5 000, até o fim de 2021. “Mais e mais clientes começaram a comprar on-line durante a pandemia”, justificou a empresa.
Por mais que a situação pareça irreversível para algumas companhias, é prudente não duvidar da capacidade de as grifes resistirem às mudanças de comportamento, ajustando as operações ou até mesmo mudando radicalmente a linha de produtos. A própria Abercrombie é exemplo disso. Em meados do século passado, era uma marca robusta, para pessoas que desejassem transmitir ao mesmo tempo força e sofisticação. Anos depois, virou uma das grifes preferidas da garotada baladeira. Recentemente, a empresa fez novas apostas ao lançar uma campanha publicitária, veja só, estrelada por pessoas com alguns quilos a mais. O público aprovou. Talvez não seja tarde demais para se reinventar.
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717