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William Shakespeare, o primeiro ambientalista

Novo livro publicado no Reino Unido identifica a preocupação do dramaturgo com problemas sociais ligados à natureza

Por Marilia Monitchele
Atualizado em 4 jun 2024, 11h19 - Publicado em 11 mar 2023, 08h00
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  • A obra inescapável e universal do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) não é apenas um monumento das letras que continua inspirando escritores, cineastas e outros artistas mais de quatro séculos depois de sua morte, mas é peça fundamental na maneira como os seres humanos se acostumaram a discutir sua própria humanidade. O olhar crítico do bardo, muitas vezes debochado, mas sempre perspicaz, foi fundamental para interpretar os meandros da alma humana, as dores e amores de todos nós. Essa habilidade é celebrada há séculos. Agora, uma outra faceta de seu trabalho começa a ser revelada: a preocupação ambiental, muitas vezes oculta em peças extremamente populares.

    Publicado recentemente pela editora Oxford University Press, ligada à Universidade de Oxford, o livro Shakespeare Beyond the Green World: Drama and Ecopolitics in Jacobean Britain (ainda inédito no Brasil), de Todd Borlik, especializado em literatura renascentista, propõe interpretações heterodoxas sobre algumas peças clássicas. Personagens como Mac­beth e Rei Lear, segundo ele, passam por momentos de epifania para mostrar a arrogância e a crueldade dos seres humanos. “Shakespeare usa a realeza como uma metáfora para o controle humano do meio ambiente”, diz Borlik. “Quando reis descobrem que a terra não existe para atendê-los, suas peças estão nos ensinando a abandonar as ilusões de que temos o direito de dominar o planeta.”

    DOR - Quadro de Tiepolo retrata a peste: o bardo perdeu parentes para a doença
    DOR - Quadro de Tiepolo retrata a peste: o bardo perdeu parentes para a doença (Mauro Magliani/Electa/Mondadori Portfolio/Getty Images)

    O ambientalismo de Shakeaspeare pode ser decifrado em textos relevantes do gênio de Stratford-upon-Avon. A Tempestade, tida com a última peça escrita pelo gênio das letras, se passa em uma ilha remota. Durante muito tempo, acreditou-se que ela ficava no Mediterrâneo, ou era uma alegoria para a América, cuja “descoberta” pelos europeus ainda era recente. Borlik, contudo, afirma se tratar de uma referência ao processo de drenagem dos pântanos das Fenlands, no leste da Inglaterra. A decisão do governo de transformar a região em campo agricultável encontrou resistência popular, e alguns cidadãos sabotaram o processo com atos que hoje em dia seriam chamados, jocosamente, de “ecoterroristas”.

    Há outras descobertas. Na tragédia Coriolano, o dramaturgo trata da revolta da população contra a decisão do governo de armazenar grãos e vetar o acesso dos cidadãos aos alimentos. Embora ambientada em Roma, faz referência à colonização da província irlandesa de Ulster, levada a cabo pelo rei Jaime I. Terras eram confiscadas dos antigos líderes gaélicos, grandes fazendas eram fundadas pelos membros das classes abastadas da Inglaterra e colonos eram enviados para cuidar das plantações, provocando a revolta da comunidade. Em Conto de Inverno, a rainha Hermione é acusada de adultério e despida de suas roupas feitas de pele em uma cena que, segundo Borlik, serve de metáfora para a esfola de um animal. A crítica seria direcionada ao rei Jaime I, um entusiasta da caça. Em Macbeth, o autor menciona uma onda de calor em cenas que mostram seu interesse pela natureza — e podem ser lidas como previsão do aquecimento global.

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    NA MIRA - Rei Jaime I da Inglaterra: obras do escritor lamentam o gosto do monarca por sangrentas caçadas
    NA MIRA - Rei Jaime I da Inglaterra: obras do escritor lamentam o gosto do monarca por sangrentas caçadas (Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images)

    A preocupação de Shakespeare pelo impacto da ação humana na natureza não é à toa. O dramaturgo nasceu logo depois de um surto de peste que matou um quinto da população e causou impacto em sua família. Nas décadas seguintes, outras chagas mataram amigos do autor e espalharam o medo entre a população. Quando o número de mortos atingia um certo nível, o isolamento social era imposto e teatros e bordéis eram fechados na expectativa de reduzir a contaminação. Nos períodos de quarentena, Shakespeare escreveu algumas de suas peças mais conhecidas, como Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra.

    Embora apresente uma perspectiva surpreendente das obras de Shakespeare, Borlik, a rigor, não inaugura um novo campo de estudos. Ele trata de iluminá-lo com ênfase. Em 2015, o crítico e pesquisador do trabalho shakespeariano Randall Martin lançou Shakespeare and Ecology, uma das primeiras análises a abordar a militância política do autor. Além das peças mencionadas por Borlik, Martin analisa outras questões atreladas aos danos ambientais, como o desmatamento apresentado em As Alegres Comadres de Windsor e a agricultura voltada para o lucro a qualquer custo em Como Gostais. Shakeaspeare estava, definitivamente, muito à frente de seu tempo. Lê-lo aos olhos de hoje, e interpretá-lo de mãos dadas com a natureza, é um exercício agradável — e fundamental, porque só temos um planeta Terra.

    Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832

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