Um século atrás, a elite paulistana assistia aturdida às ousadias da Semana de 22 — mas o jovem Alfredo Volpi (1896-1988) não estava nem aí para esse trem que seria conhecido como modernismo. Ele tinha, de fato, mais que fazer: italiano pobre que viera ainda criança de Lucca, na Toscana, trabalhava na construção civil para garantir o sustento. Àquela altura, Tarsila do Amaral estudava na Europa com luminares como Fernand Léger; Oswald e Mário de Andrade, bem como Cândido Portinari, frequentavam os salões endinheirados da Pauliceia. Volpi, em contraste, estudara só até o ginásio. Mais um rosto em meio à massa de imigrantes da metrópole, foi encanador, marceneiro e, finalmente, pintor de paredes. É uma ironia pensar que um dos artistas plásticos mais reconhecíveis e valorizados hoje no país, com suas incontornáveis bandeirinhas, atuasse então como mero preparador das superfícies nas quais outros pintores decorativos fariam seus trabalhos. Como ele foi de operário dos pincéis a nome central da arte moderna brasileira é uma pergunta respondida com louvor pela mostra Volpi Popular — que acaba de estrear no Masp, em São Paulo.
Volpi nunca se identificou com as vanguardas modernistas, e era avesso a divagações teóricas: homem prático, burilou sua pintura a partir da labuta diária como artesão. “Ele era um mestre autodidata e intuitivo. Em vez de se associar a movimentos, preferia trabalhar tranquilo em seu ateliê no bairro do Cambuci, fumando um cigarrinho de palha”, diz o curador-chefe do Masp, Tomás Toledo. Por trás da humildade inquebrantável, porém, havia um artista antenado com as questões da arte de seu tempo. Ainda que seu reconhecimento tenha sido tardio: até os anos 1950, alguns estudiosos esnobavam o caráter supostamente naïf (ou ingênuo) de sua obra. Um dos responsáveis por quebrar esse preconceito, o crítico Mário Pedrosa notou que Volpi “passou, naturalmente, por todas as fases da pintura moderna, do impressionismo ao expressionismo, do fauvismo ao cubismo, até o abstracionismo”.
A verdade é que Volpi foi muito além da soma desses “ismos”: assim como Tarsila e Portinari, ele alcançou a condição rara de artista não apenas inovador, mas popular. A mostra do Masp, com cerca de 100 itens, investiga a ligação entre a vida do pintor e um universo temático que vai da arquitetura do casario simples às festas e costumes sociais. Inspirações que não extraía das ruas agitadas de São Paulo, mas da mansidão do interior — são constantes em seus quadros cenas de Mogi das Cruzes, cidade paulista onde tinha uma chácara, e Itanhaém, no Litoral Sul do estado. Volpi viveu alguns anos à beira-mar por recomendação médica: sua esposa, Judite, padecia de uma doença sobre a qual não se sabem detalhes.
Sua união com Judite, aliás, aprofundou a conexão de Volpi com as raízes brasileiras. Entre filhos de sangue e adotivos, o italiano criou dezenove crianças junto com a esposa negra. Ele imortalizou Judite em uma tela na qual ela surge nua de braços abertos. A admiração pelos afrodescendentes o levou a povoar muitas de suas obras com personagens de pele escura — o que configurava uma avançada piscadela para a diversidade no Brasil da primeira metade do século XX. Às vezes, Volpi não tinha pudor em afrontar o tradicionalismo católico: pintou um lindo anjinho e até uma Madona com Menino Jesus negros.
Volpi – Coleção Espaços da Arte Brasileira
Uma das virtudes da retrospectiva do Masp é expor esse Volpi que vai além das bandeirinhas. Logo na entrada, o espectador é apresentado à sua vasta produção de imagens religiosas. Durante um período da vida, ele produzia gravuras de santos para sobreviver. Não considerava a atividade parte de sua obra. Mas a linha que dividia o Volpi artesão do Volpi artista era tênue: ao mesmo tempo, fez estupendas pinturas do gênero. Ele se devotou também a outras formas de misticismo pop: uma tela em tons de verde e azul exibe uma graciosa figura feminina que é meio sereia, meio — possivelmente — Iemanjá.
A dúvida sobre os tipos que povoam sua obra decorre de um dado peculiar: Volpi era um homem de poucas palavras, e não deu nome a muitos quadros, alimentando o mistério sobre seu universo. Não se sabe ao certo, inclusive, como ele descobriu sua marca maior, as bandeirinhas. Reza uma teoria que, certo dia, teria se encantado ao ver Mogi das Cruzes toda decorada para as festas juninas. Outra vertente sustenta que elas teriam surgido de sua diluição obsessiva das formas arquitetônicas. Impossível elucidar se uma das versões procede — mas é fato que Volpi foi radicalizando o expediente com o tempo. “Mais que as paisagens, pessoas e objetos, ele se interessava pela simplificação das formas e pela exploração das cores e texturas”, diz o curador Toledo. Eis o feito de Volpi: em uma única e singela bandeirinha, ele sintetiza um imenso legado modernista.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778
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