À 1h23 de 26 de abril de 1986, o pior pesadelo do mundo pós-II Guerra Mundial começou a ganhar corpo: o reator 4 explodiu com tal violência que arremessou aos ares o teto do edifício que o abrigava, como se as toneladas de concreto fossem uma tampa de plástico. O fogo rugia a partir das 195 toneladas de combustível nuclear incandescente, e uma imensa coluna luminosa — radiação pura —projetou-se rumo ao céu, atraindo multidões de curiosos na madrugada de Pripyat, a cidade distante 5 quilômetros que servia de base aos funcionários do complexo de Chernobyl. Os bombeiros acorreram à bocarra que virara o edifício 4 para trabalhar, sem proteção e em completa ignorância, sob uma precipitação radiativa noventa vezes maior que a da bomba de Hiroshima. Os que não morreram em questão de horas estariam mortos em poucos dias. Enquanto em Pripyat as crianças brincavam sob uma nevasca fora de estação — as cinzas letais do incêndio —, nas salas de controle da usina os engenheiros, cientistas e burocratas, mais temerosos dos seus superiores políticos que da radiação, começaram a puxar uma longa fila de negação: foi só uma pequena falha, a contaminação é mínima, está tudo sob controle. A Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista, seria dito naquela manhã que o reator 4 poderia ser colocado no meio da Praça Vermelha, em Moscou; era tão perigoso “quanto um samovar”.
Eis os dois flancos, então, pelos quais a minissérie em cinco episódios Chernobyl aborda o pior desastre nuclear da história: por meio de alguns personagens, a excelente produção que a HBO começa a exibir nesta sexta-feira 10, às 21 horas, trata do lento despertar para a realidade das centenas de milhares de ucranianos e bielorrussos que teriam a vida virada de ponta-cabeça ou interrompida; por meio de outros, devassa as maneiras pelas quais um Estado próximo da falência, e aferrado ao segredo e à mentira, multiplicou exponencialmente as consequências da catástrofe.
Central para a história é Valery Legasov, o cientista incumbido de chefiar a investigação sobre o acidente. O suicídio de Legasov, exatos dois anos após a explosão, abre o primeiro episódio: interpretado pelo magistral Jared Harris, um ator com dom para o trágico, ele garantiu que uma certa quantidade de dados confiáveis fosse coletada e transmitida à Agência Internacional de Energia Atômica — mas não conseguiu impedir a operação maciça de acobertamento deflagrada pelo aparato soviético, tampouco a arbitrariedade e a ineficácia das medidas de contenção.
Apoiado por uns poucos aliados, como o político chamado à consciência Boris Shcherbina (Stellan Skarsgard) e a cientista vivida por Emily Watson (esta, um composto de figuras verídicas), Legasov teve de ver como mineiros cavaram um túnel até a base do reator trabalhando sem camisa e sem máscara, tal o calor e a falta de oxigênio; como os níveis “aceitáveis” de radiação eram reinventados à base de canetadas; como toda informação foi suprimida dos moradores de Pripyat e, depois, dos que se encontravam na longa esteira de radiação; como o meio milhão de “liquidadores”, os operários e soldados encarregados de limpar a zona de desastre, foi exposto a riscos fatais (estima-se que cerca de 250 000 deles tenham morrido antes de completar 40 anos). Desde o início da minissérie, assim, um personagem se destaca mais do que todos os outros: a mentalidade criminosa de negligência que se dissemina quando um Estado se coloca acima de seus cidadãos. A União Soviética a cultivou como poucos, mas Chernobyl faz pairar, sobre o céu da Ucrânia, o fantasma de todos os outros desastres manufaturados pela indiferença.
Publicado em VEJA de 15 de maio de 2019, edição nº 2634
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