Uma verborrágica senhora na casa dos 60 anos vai à delegacia prestar queixa. Perto de sua casa, em um vilarejo na região de Kłodzko, na Polônia, ela testemunha com frequência a ação de caçadores ilegais. Os policiais, no entanto, a recebem com desdém. Na saída, eles zombam de sua figura: “Velha maluca”. A mulher sai dali irritada e desorientada. A sensação, contudo, vem mais da impotência de não ser ouvida do que da indignação com a chacota: a protagonista de Sobre os Ossos dos Mortos, da polonesa Olga Tokarczuk, está acostumada a ser tachada de lunática — e o leitor será tentado a concordar com isso.
O apego aos animais e à natureza e sua dificuldade em protegê-los são dores emocionais que se somam ao que ela chama de “minhas moléstias”: uma vaga e misteriosa enfermidade que a afeta fisicamente. Para aplacar as agonias da realidade, a idosa, uma professora de inglês aposentada, encontra fuga na astrologia e cria uma espécie de mundo paralelo ao trocar nomes reais por apelidos. Batizada de Janina, nome que abomina, ela crê que os seres vivos devem ser designados por sua personalidade. Por isso o espanto de quem lê, nas primeiras páginas do livro, Janina dizer que é acordada na madrugada por Esquisito, que lhe avisa: Pé Grande morreu. Esquisito e Pé Grande são seus vizinhos, e os únicos eremitas que permanecem com ela na região — um vale na divisa da Polônia com a República Checa, durante o gélido inverno de 20 graus negativos, que espanta outros moradores. Janina e Esquisito, então, sobem o morro recoberto de neve pesada para encontrar o corpo retorcido. A protagonista vegetariana revelara desprezo por Pé Grande em vida: era um homem grosseiro que caçava indiscriminadamente por ali. Ao perceber que ele morreu ao se engasgar com o osso de uma corsa, abatida por ele pouco antes, Janina demonstra satisfação. Ao longo da trama, outros caçadores morrem de forma misteriosa. Tráfico ilegal de peles de animais e até envolvimento com a máfia são suspeitas levantadas pelas autoridades. Para a protagonista, não há dúvidas: como vingança, os bichos se tornaram assassinos em série de seus carrascos.
É fácil enxergar em Janina o alter ego de Olga. A polonesa de 57 anos, feminista e ela própria vegetariana, é figura controversa em seu país — especialmente agora, com o governo ultraconservador e nacionalista de Andrzej Duda no poder. Qual não deve ter sido o recalque dos críticos locais quando Olga foi anunciada, em outubro deste ano, vencedora do Nobel de Literatura. A autora levou a honraria referente a 2018, adiada depois que a Academia Sueca se viu envolta em um escândalo (Jean-Claude Arnault, marido da escritora Katarina Frostenson, que integra o comitê da Academia, é acusado de assédio e agressão sexuais por dezoito mulheres). Há quem diga que a escolha de Olga veio para limpar a reputação manchada da instituição. Sobre os Ossos dos Mortos, que ganha sua primeira tradução no Brasil, direto do polonês, prova que é injusto ver na sua premiação apenas um esforço de limpar a barra: a autora merecia mesmo o Nobel.
Categorizar Sobre os Ossos dos Mortos é uma missão ingrata. Aos olhos de boa parte da crítica internacional, a novela — adaptada para o cinema no filme Rastros (2017) — seria um thriller existencial ou, mais especificamente, um suspense ecológico. Mas, como ensina a protagonista Janina, rótulos são relativos. Olga não se prende a um gênero específico. Ela é dona de uma escrita fluida — leveza que se vê na própria figura da escritora risonha e dona de descolados dreadlocks envoltos em bandanas coloridas na cabeça. Olga reage aos dilemas atuais deslizando entre o cômico e o grotesco, com uma pitada de realismo fantástico. Características que, somadas à destreza de criar tramas complexas, mas que nem por isso deixam de ser ágeis e palatáveis, fazem lembrar por vezes um Gabriel García Márquez, outro Nobel pop da literatura que conduz pela mão seus leitores por paisagens e personagens magnéticos. Olga ainda subverte a convencional fórmula do whodunnit. A premissa do “quem matou?”, que serve de linha condutora desse tipo de thriller tão bem explorado por autores como a inglesa Agatha Christie, é substituída por uma questão mais perturbadora: quem tem ou não o direito de matar? Se um homem pode matar e comer um animal, o que faz com que o contrário seja condenável? Ou melhor: quem define, no jogo da vida, a espécie humana como superior às demais?
Para a protagonista, só o que há de certeza é que o cosmo seria comandado pela astrologia, e essa crença a leva a uma posição radical: Janina vê o livre-arbítrio como uma falácia. Sua fé mística encontra paralelo no cristianismo do poeta inglês William Blake (1757-1827) — de quem ela é fã devota, a ponto de traduzir suas obras para o polonês. Blake é parte essencial da novela: o título, aliás, vem de um de seus poemas, The Marriage of Heaven and Hell (“O casamento do céu e do inferno”). Assim como Blake dizia na obra ver seres de outro plano, como anjos, Janina vez ou outra vê espíritos. No plano terreno, o inglês tinha olhos afiados para dramas sociais que o iravam: na mesma linha, Janina não aceita que o meio ambiente seja subjugado pelos excessos humanos e acredita que a retaliação do planeta está por vir. A autora transfere para as páginas suas aflições ecológicas. Não cai, porém, no ativismo explícito: ela parte do drama dos animais para produzir um testemunho de seu tempo. Isso se revela com clareza na relação de Janina com uma de suas esporádicas vizinhas — uma escritora que a deixa ressabiada. “Pessoas que dominam a escrita costumam ser perigosas. Logo, levantam suspeitas de falsidade — de que não são elas mesmas, mas um olho”, desconfia Janina. Se os grandes autores são janelas para a alma humana, poucos hoje se revelam tão cristalinos quanto Olga.
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662
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