Escritores tornaram-se personagens recorrentes na literatura contemporânea. De Philip Roth a Elena Ferrante, o recurso a protagonistas que espelham muitas situações compartilhadas com os autores reais, forçando os limites entre o literário e o biográfico e jogando com a percepção dos leitores, já foi tão empregado que hoje é parte da paisagem literária tanto quanto o todo-poderoso narrador realista ao modo de Flaubert no século retrasado. Pois a escritora Rachel Cusk conseguiu conferir um renovado frescor a esse procedimento. Trânsito, o mais recente lançamento no país dessa canadense radicada na Inglaterra, é a sequência de uma trilogia iniciada com o cultuado Esboço. Assim como seu antecessor, é centrado em uma narradora e protagonista, Faye — escritora, recém-divorciada e lidando com as novas variáveis apresentadas pela vida. Não faltou quem reconhecesse as semelhanças com a vida de Cusk, até mesmo nos detalhes da separação e do ensino de escrita criativa, atividade a que efetivamente se dedica e presente nos dois romances.
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Nada de novo? Engano. A autora extrai dos elementos mais banais da vida — um e-mail de uma astróloga ou um jantar com uma amiga — a matéria para sua meticulosa construção ficcional, com linguagem sempre calculada, medida e expressiva. A marca de Cusk resulta de um par de combinações interessantes. Em Trânsito, a história de Faye (cujo nome é mencionado apenas uma vez) é apresentada ao leitor a partir de uma sucessão de instantâneos de sua vida, tirados em momentos aparentemente desconexos, tendo por único cimento a informação de seu divórcio e a mudança de volta para Londres, onde comprara um flat em péssimo estado.
A certa altura da narrativa, Faye está com seu grupo de alunos de criação literária. Enquanto os estudantes falam, seu olhar é atraído para a janela, na qual se descortina uma paisagem de nuvens indecifráveis, como se fosse “um lugar de estase onde não havia movimento ou avanço, nenhuma sequência de acontecimentos que pudesse ser estudada por seu significado”. Na sequência da mesma passagem, Faye oscila da reflexão sobre a paisagem exterior para a falatório das alunas (predominantes) e alunos na sala, indagando-se: “Escutava os alunos falarem e me perguntava como eles podiam acreditar tanto na realidade humana para construir fantasias em relação a ela”. Da combinação de ausência dessas ilusões com o rigor da prosa, Rachel Cusk fortalece sua capacidade narrativa para fazer do encontro de Faye com um ex-namorado ou de um jantar na casa de seu primo o tipo de material de que precisa para sua literatura: uma escrita dócil na superfície, mas controlada ferozmente.
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Ainda assim, o forte de sua prosa reside em outra característica: ao contrário da maioria da ficção que exibe escritores como protagonistas, a narradora dos romances de Cusk pouco fala de si, e não infecta a página como nas incessantes viagens egóticas que marcam muito da literatura de seus pares. O relato de Faye apresenta ao leitor a vida dos outros e, assim fazendo, apenas deixa entrever a sua própria. Se Cusk tem razão em dizer, como diz, que há certa crise do romance e das formas narrativas, parece que o antídoto que encontrou é terapêutico: ouvir mais e falar menos de si.
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700
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