Raízes sem força
A modernista Djanira ganha aura de heroína feminista em mostra do Masp. Mas isso não redime a mediocridade de sua arte
A pintora Djanira da Motta e Silva (1914-1979) tinha credenciais de “mulher do povo”. Nascida em família pobre do interior paulista, filha de pai de origem indígena, trabalhou como boia-fria e passou parte da juventude internada em um sanatório para tuberculosos. Ao sair, estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde ganhava a vida cozinhando, costurando para fora e administrando uma pensão no Morro de Santa Teresa. Certo dia, ao ver desenhos que ela rabiscara na cozinha, um entre vários hóspedes ligados ao mundo das artes quis saber: quem seria o autor? O interlocutor duvidou duas vezes, antes de Djanira enfim convencê-lo: sim, a artista era ela.
Com suas cenas da vida nacional, das festas de rua ao candomblé, do artesanato às agruras por que passam os trabalhadores, Djanira ocupou um posto intermediário na arte moderna do país. Os críticos dos anos 40 tachavam-na de naïf — classificação quase ofensiva. Mas a aura de talento autodidata resultou em algum sucesso comercial e trouxe fãs como Jorge Amado. O veredicto do tempo, no entanto, não foi generoso. O preço dos quadros de Djanira despencou depois de sua morte. Por décadas, nenhum museu se animou a expô-los. Agora, Djanira protagoniza um ritual típico dos tempos atuais: uma mostra no Masp busca rever sua trajetória pelo prisma da afirmação de gênero.
Djanira: a Memória de Seu Povo, já em cartaz, abre um ano de programação voltada para o feminismo no museu, que incluirá uma retrospectiva de Tarsila do Amaral e outra da arquiteta Lina Bo Bardi, criadora do prédio da instituição paulistana. No caso de Djanira, almeja-se uma revisão de imagem radical. “Queremos desconstruir a ideia de que ela era uma artista ingênua. Isso é fruto de uma visão de mundo europeia e de preconceitos elitistas”, diz uma das curadoras, Isabella Rjeille. A tentativa de “descolonizar” o consenso sobre Djanira inclui pintá-la como “artista engajada, empenhada em promover uma agenda popular dentro de um programa artístico cada vez mais rigoroso”, escreve no catálogo outro curador, Rodrigo Moura.
Há uma divertida ponta de anacronismo em mostras assim. Djanira despontou nos anos 40, duas décadas antes de o movimento feminista ganhar a feição de hoje. A operação de resgate incorre, ainda, na tentação capciosa de fazer crer que eventuais qualidades humanas de um artista lhe confeririam automaticamente um selo de excelência. Infelizmente, a realidade é mais complicada do que esforços hagiográficos sugerem. Muita arte boa foi feita por gente ruim — pense no assassino Caravaggio ou no sexista Picasso. E o contrário também ocorre: muita arte ruim foi feita por gente que supostamente encarnou ou explorou temáticas nobres. É o caso de Djanira.
Por mais que enalteça a vida sofrida, a autenticidade e a perseguição de que Djanira foi alvo por seu engajamento político, a mostra não consegue redimir o que se vê nas paredes do Masp. O folclorismo pueril da pintora resume um dos piores cacoetes do modernismo brasileiro. Seus quadros não despertam nenhuma emoção particular. As exceções — os retratos e cenas quase abstratas da mineração em Minas Gerais — nada somam ao que outros modernistas fizeram antes. Reinventar Djanira como heroína feminista não muda a realidade: ela era uma artista medíocre.
Publicado em VEJA de 6 de março de 2019, edição nº 2624
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