Até pouco tempo atrás, o pianista Jonathan Ferr precisava pegar ônibus e metrô para sair de Madureira, na Zona Norte do Rio de Janeiro, se quisesse ver apresentações ao vivo de jazz. Como as noitadas acabavam tarde, muitas vezes ele se viu sem transporte público para voltar da Zona Sul ao bairro onde nasceu, trajeto que poderia durar mais de uma hora. “Mas eu estava tão apaixonado pelo jazz que queria me nutrir dele”, disse Ferr a VEJA, pouco antes de se apresentar ele próprio no palco da tradicionalíssima filial paulistana da casa nova-iorquina Blue Note. O pianista de 34 anos passou de plateia a atração principal nesses locais sem perder de vista uma cruzada pessoal: popularizar o jazz na periferia. Em seu novo álbum, Liberdade, o terceiro da carreira e com lançamento programado para o segundo semestre, ele quer ampliar o alcance do gênero mesclando-o com R&B, hip-hop e música eletrônica.
A Love Supreme
O livro do jazz: de Novas Orleans ao século XXI
Ferr começou a se interessar pelo piano ainda criança, assistindo ao programa Pianíssimo, da Rede Vida, com seus pais. Aos 8, ganhou um tecladinho e começou a dedilhar por conta própria as primeiras notas, inspirado em Tom Jobim. Na adolescência, se apaixonou pelo álbum A Love Supreme, de John Coltrane, e decidiu que seria músico de jazz. A profissionalização viria alguns anos depois, ao ganhar uma bolsa e se formar na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio. Nada disso, porém, teve tanta influência nele quanto as ideias do americano Sun Ra, compositor de jazz e filósofo pioneiro do afrofuturismo, movimento que usa elementos da ficção científica para dar protagonismo aos negros. O álbum anterior de Ferr, Cura (2021), é um exemplo disso. Nele, o pianista usa elementos do afrofuturismo, budismo e rituais xamânicos para compor o que chamou de “música-medicina” — melodias que, segundo ele, acalmam e curam a alma das pessoas. Adepto do universalismo, crença esotérica de que todos estão destinados à salvação eterna, Ferr lembra que Cura surgiu durante a pandemia, e veio de uma provocação: “Quando você tem uma cicatriz, ela está ali para dizer que você se feriu ou que se curou?”. “Falamos da cura física, mas e a cura mental e psicológica? O que nos cura?”, divaga.
Com esse jeitão profético e uma perícia no piano que levanta até a mais entediada plateia, Ferr surge como um sopro de renovação no jazz no Brasil, país onde o gênero sempre foi visto como elitista — ao contrário dos Estados Unidos, em que suas raízes remontam à música negra de Nova Orleans no início do século XX. É justamente essa impressão que Ferr deseja jogar por terra. Seus próximos shows atestam sua coerência. Em 13 de maio, ele volta a se apresentar no Blue Note, em São Paulo. Mas quinze dias depois fará um show no Méier, subúrbio do Rio. No bairro, aliás, ele já fez apresentações de jazz a 1 real. Na ocasião, uma senhora doméstica o abraçou e disse que ouvia os patrões falando de jazz, mas que jamais imaginou que poderia ser a música que ele faz. Não por acaso, Ferr é o único músico instrumental do cast da Som Livre, gravadora que nos últimos anos focou suas contratações em duplas sertanejas e no funk. “Quero repensar a música preta e o jazz no Brasil”, afirma ele. O mundo só muda, é fato, ao ritmo das grandes ambições.
Publicado em VEJA de 13 de abril de 2022, edição nº 2784
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.