O escritor cubano Leonardo Padura, 68 anos, reclama que em muitas de suas entrevistas ele é questionado mais sobre política e a situação de seu país que sobre literatura. Ele tem razão em sua reclamação, mas pondera que esse rótulo de autor crítico ao regime não é sua exclusividade: também colou em outros autores cubanos como Guillermo Cabrera Infante (1929 – 2005) e Pedro Juan Gutiérrez. Agora em outubro, Padura vai lançar em países de língua espanhola seu décimo-quinto romance, Ir a la Habana, ainda sem previsão de sair no Brasil. Aqui no país, seu último título foi publicado no ano passado, Pessoas Decentes.
Sua agenda está bastante movimentada. Além da Bienal Internacional do Livro do São Paulo, onde Padura recebeu a reportagem de VEJA para uma conversa, ele participa nesta sexta-feira, 20, às 17h, de uma mesa-redonda em outro evento na cidade, o FliMUJ – Festival Literário do Museu Judaico. Depois, segue para o Rio num encontro com leitores no Centro Cultural Banco do Brasil, faz palestras em Belém e em Brasília antes de retornar à ilha caribenha. No Rio, ele vai conversar com leitores sobre o livro O Homem que Amava os Cachorros, sua obra mais conhecida, que lhe abriu as portas do mercado global e está completando quinze anos agora em 2024. Seus doze títulos publicados no Brasil já venderam mais de 180 000 exemplares — O Homem que Amava os Cachorros responde por mais da metade das vendas.
O criador do cativante ex-policial, detetive particular e livreiro Mario Conde conversou sobre como criou o personagem e como é sua forma de trabalho. O autor é mestre em romances que mesclam tão bem fatos históricos com ficção, criando histórias com contextos muito verossímeis e impactantes. “A ficção é distinta da realidade histórica, factual. Mas uma boa ficção pode ser bastante real. Parece contraditório, mas não é”, disse ele. Confira a entrevista:
Seus livros mostram uma Havana distante da capital caribenha turística. Há muita melancolia e desamparo no ar e nas ruas. Como está Havana hoje? Daqui a um mês estarei na Espanha apresentando meu novo livro [Ir a la Habana, ainda sem tradução em português], que é sobre Havana. Falo como alguém que nasceu na periferia e foi conhecendo a cidade, se apropriando dela. Havana é uma cidade que tem características culturais, históricas e geográficas que a tornam muito atraente para a literatura. Eu me apropriei dessa cidade e tentei escrevê-la. Não me interessa, de forma alguma, uma Havana de cartão postal turístico. Interessa-me uma Havana na qual as pessoas vivam, sintam a cidade e os dramas que ela enfrenta. Hoje, Havana é um lugar que está sofrendo um grande abandono, com muitos problemas sociais, econômicos e ambientais. Neste momento em que conversamos, há uma crise na coleta de lixo que está contaminando a cidade. Aquela cidade que foi tão imponente, tão luxuosa, que chegou a competir em suntuosidade com outras cidades do mundo, foi se deteriorando, foi sendo negligenciada. E é um processo que sofro não apenas como escritor, mas também diariamente como cidadão, porque vivo nessa cidade. E isso é o que tento trazer para meus romances.
O senhor tem quase a mesma idade de Mario Conde, personagem de dez de seus livros. Como está sendo esse processo de envelhecer junto com ele? Mario Conde aparece num romance que se passa no ano de 1989, quando ele tem 35 anos e eu, 36. Ele era um policial bastante heterodoxo porque eu queria que as novelas servissem para eu observar a realidade cubana e escrever sobre isso. E sendo um policial comum, isso não teria sido possível. Ele tinha de ter uma série de características que o tornassem verossímil, mas ao mesmo tempo permitisse que eu fizesse esse exercício de refletir uma realidade. Em Pessoas Decentes (2022), Conde tem 60 anos. Além disso, ele, que bebeu e fumou tanto, tem de tomar muito mais cuidado com o passar do tempo. Ele me serviu para observar o próprio processo biológico e mental da passagem do tempo e do envelhecimento. Conde está cada vez mais cético, cada vez mais pessimista, tem uma visão da realidade que às vezes pode ser um pouco dura. E também há o aspecto físico, claro. À medida que o tempo vai passando, compreendemos, eu e Conde, algo que é terrivelmente dramático, mas muito real, que é o fato de se ter mais tempo vivido do que tempo restante. Começamos a ver a realidade através de outras lentes, outras perspectivas, e eu tentei representar isso com o Conde de 60 anos.
Na literatura anglo-saxã há uma tradição em grandes personagens detetives, Sherlock Holmes, Philip Marlowe, Sam Spade, Hercule Poirot, Nero Wolf, Lloyd Hopkins, entre outros. De onde veio a inspiração para criar Conde? Conde tem dois motivos fundamentais para existir. O primeiro era que eu queria escrever romances policiais que fossem cubanos, mas que não se parecessem com os que eram publicados em Cuba. Desde os anos 1960, foram publicadas em Cuba as chamadas novelas policiais revolucionárias. Eram romances de reafirmação política, de propaganda, nos quais os personagens policiais sempre representavam os interesses do poder. Eu queria criar um personagem que tivesse conflitos com essa realidade e que tivesse ideias que a questionassem. Havia, por outro lado, uma tradição desses detetives dos romances policiais clássicos, menciono três: Holmes, Marlowe e Spade. A partir dos anos 70, a literatura policial se expandiu, rompeu o molde dos grandes centros anglo-saxões e franceses, e começou a surgir em outras línguas. Há dois mestres muito importantes que começaram a provocar essa mudança nas periferias. Um é Leonardo Sciascia, na Itália, com seus romances sobre a máfia, e o outro é Rubem Fonseca. Rubem me deu uma ideia de como sociedades muito mais densas em termos dramáticos, como a realidade do Brasil, poderiam ser levadas para a literatura policial. Fora dos grandes centros começaram a surgir personagens contraditórios, cínicos e céticos. Pensei, por aí está a criação de Conde. Ele deve muito aos clássicos, mas deve muito aos modernos também.
E, nesse sentido, é um personagem mais humano, mais falível? Acredito que sim, e acrescentaria ainda mais imprevisível. Na literatura policial, a maioria dos personagens são possibilidades. E a possibilidade precisa ser verossímil, não necessariamente real. A literatura funciona com códigos que se alimentam da realidade, mas que não são a realidade. Se alguém conta um acontecimento exatamente como ele aconteceu na vida real, não há dramatismo. O dramatismo está na construção literária dessa realidade. Bons personagens, com falhas e méritos, ajudam demais nesse processo.
Seus livros fazem uma mescla muito interessante de ficção com realidade. O último, Pessoas Decentes, aprofunda ainda mais essa mistura. Como é trabalhar assim? Como escritor, você precisa ser um observador da realidade. Além disso, precisa ter uma memória histórica da realidade para poder escrever. Quando se move em contextos históricos específicos — por exemplo, em O Homem que Amava os Cachorros, com o assassinato de Trotsky [Leon] por Ramón Mercader, ou em Hereges, a história da perseguição aos judeus —, é preciso se informar sobre essa realidade. Mas é preciso olhá-la a partir da perspectiva de um criador, não de um historiador. Não é para construir uma teoria sobre a realidade, mas fazer uma reflexão a partir da perspectiva dramática que a literatura tem.
A realidade continua presente na ficção ou ela se dilui para criar algo novo? A ficção é distinta da realidade histórica, factual. Mas uma boa ficção pode ser bastante real. Parece contraditório, mas não é. Em Pessoas Decentes, a história do personagem Alberto Yarini ocorre em 1910 e a outra história paralela, em 2016. A de 1910 está centrada em torno de um personagem histórico, que é o proxeneta Yarini. Esse personagem real me serve para representar a realidade daquele momento. O Alberto Yarini real tem uma biografia, mas eu a manipulo, crio uma ficção verossímil. O grande mérito da arte do romance é que ele tem uma enorme liberdade. Pode-se escrever um romance como “1984”, de Orwell [George], no qual tudo o que acontece é ficção, e ainda assim cria-se uma realidade. E essa realidade é tão real que, com o passar dos anos, se torna ainda mais verossímil. A ficção tornou-se mais real!
O Homem que Amava Cachorros está completando quinze anos. Qual a importância desse livro em sua vida e em sua obra? Foi muito importante porque me permitiu ultrapassar fronteiras. Aqui no Brasil, talvez seja o caso mais visível. Eu comecei publicando no Brasil com a editora Companhia das Letras, uma grande casa editorial. Depois publiquei dois romances com a Saraiva, outra grande editora, e vendi 2.000 exemplares somando as duas. Publiquei O Homem que Amava os Cachorros pela Boitempo e o sucesso do livro abriu as portas do Brasil para mim. Acredito que o livro se conectou com a necessidade de muitos leitores de falar sobre um tema que nos afeta a todos, que é como aquela grande utopia igualitária do século XX foi corrompida.
Poderia explicar melhor essa ideia? Uma utopia que nos permita pensar que as sociedades podem evoluir para um mundo com mais justiça, igualdade e equidade é importante porque sabemos que está ocorrendo exatamente o oposto. Aquela utopia igualitária que moveu toda uma geração foi corrompida e ruiu, precisamos de novas utopias.
Em março deste ano Cuba teve uma série de protestos em várias cidades. Também houve grandes protestos em 2021. Como é viver em Cuba hoje? Acredito que os protestos tiveram a resposta previsível do governo cubano, uma forte repressão. Condenaram muitas pessoas a penas de 5, 7, 10 anos. Isso faz com que os próximos que forem sair às ruas pensem duas vezes. A situação no país continua se deteriorando econômica e socialmente. Nos últimos três anos, mais de um milhão de pessoas deixaram Cuba. Isso representa 10% da população do país, é muito. Os que foram são os que puderam ir, não os que queriam ir, que são muito mais. Muitos saíram de Cuba para a Nicarágua, e de lá são guiados por coiotes pela América Central e México. Estima-se que essa viagem custe cerca de 10.000 dólares. Apesar do custo e dos riscos, muitas pessoas foram embora. As pessoas estão cansadas, é difícil de se conseguir pão, carne, não há ovos, há muitos apagões. A sociedade cubana perdeu algo intangível que é muito importante, a esperança. Uma sociedade que não tem esperança tem muita dificuldade em funcionar.
O senhor sente algumas privações em sua profissão de escritor? Meus últimos três romances não foram impressos em Cuba, não há espaço nas editoras institucionais. Fizemos a impressão por vias alternativas de 1 000, 1 500 exemplares, no máximo. Dá muito trabalho e custa muito dinheiro. Mas essa mesma realidade me alimenta. Acredito que, lamentavelmente, quanto mais dramática é a realidade, mais literária ela se torna.
Como o senhor viu essa última eleição na Venezuela? A situação na Venezuela é muito difícil. Não gosto de falar sobre realidades nas quais eu não vivo, há muitos detalhes que às vezes escapam da minha compreensão. Espero que a Venezuela encontre alguma solução lógica, justa e racional. Não posso emitir um julgamento definitivo porque não o tenho. Acho que antes mesmo das eleições, já se sabia que o resultado, independentemente dos números, seria esse: Maduro [Nicolás, ditador venezuelano] continuaria no governo, lamentavelmente.