Uma mulher misteriosa vem de uma visitação noturna ao cemitério quando, oculta pelas sombras do Rio de Janeiro no século XVIII, testemunha um crime: um homem tenta matar um rival, mas é desarmado e ferido pela própria pistola — morrerá dias depois. O início de A Biblioteca Elementar mantém em suspense a identidade da testemunha, do assassino e de sua vítima. Contra as convenções do gênero policial, no entanto, os três personagens já serão conhecidos quando ainda faltarem mais de 100 páginas para o fim do livro. Alberto Mussa, de 57 anos, mostra o domínio narrativo que o consagrou como um dos mais instigantes escritores brasileiros contemporâneos: prende o leitor com a apresentação gradual, finamente calculada, de cada personagem e evento da história.
Este é o último título de uma série de cinco romances nos quais o autor se propôs a fazer um “compêndio mítico” de seu Rio natal, sempre a partir de um crime — dos primórdios coloniais em A Primeira História do Mundo à Velha República em O Senhor do Lado Esquerdo. O conjunto oferece um panorama deslumbrante da história social carioca, com toda a vibração e conflito de suas diferentes etnias, classes, credos, e entre eles os mistérios que constituem a propalada matéria mítica, forjada no choque imaginativo de fé católica, lendas indígenas e religiões de matriz africana. A Biblioteca Elementar volta-se para o microcosmo dos ciganos, moradores da Rua do Egito (atual Rua da Carioca), onde se dá o crime. Há um misticismo natural em uma história frequentada por mulheres que leem cartas e a palma da mão, além de um erotismo talvez mais explícito do que nos demais livros da série. De quebra, o Santo Ofício lança sua sombra inquisitorial sobre os moradores da Rua do Egito.
Enganosa em seus avanços e recuos, a narrativa reserva uma revelação para as últimas páginas — uma revelação que surpreenderá o leitor, ainda que, à luz de vários indícios plantados ao longo do livro, possa parecer tão elementar quanto a biblioteca aludida no título. Um belíssimo ponto-final.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2018, edição nº 2603