As duas obras reunidas em O Rumor do Tempo e Viagem à Armênia bem podem nos dar a impressão de que Óssip Mandelstam (1891-1938), poeta e prosador judeu nascido nos domínios do antigo império russo, nos convida a um passeio por um bazar surrealista repleto de miragens (lisérgicas?) que o artista vai extraindo de camadas tão insólitas quanto líricas de tudo aquilo de que se acerca. É assim que, aguçado como a lâmina ígnea de uma navalha aquecida por uma solda, o narrador/eu-lírico de Mandelstam nos diz que acabaram de lhe resvalar o rosto “cabelos mais negros que a asa de um corvo”, fios que, ao rés do chão, tecem “teias de aranhas” estendidas “pelos campos de cevada” e, do alto do céu, lançam “um manto sobre o abismo”. Ademais, prossegue o narrador/eu-lírico, ao redor das telas do holandês Vincent Van Gogh (1853-1890), cujos traços e cores chamejantes se veem besuntados “com os ovos fritos da catástrofe”, é possível avistar “a dança de acasalamento dos insetos fosforescentes. A princípio me pareceu que bruxuleava o fogo de minúsculos cigarros errantes, mas as espirais que eles descreviam eram arriscadas, livres e ousadas demais”. Ao fim, como se Mandelstam nos fornecesse uma chave para o desvelamento de sua ourivesaria poética, somos levados a nos deitar sobre a relva e a auscultar o murmúrio de “versos difíceis como as raízes de um bosque”.
Tanto o tradutor Paulo Bezerra, em “As Vozes Subterrâneas da História”, quanto o poeta irlandês e Nobel de Literatura de 1995 Seamus Heaney, em “Óssip e Nadiéjda Mandelstam”, textos que acompanham a edição de O Rumor do Tempo e Viagem à Armênia, discorrem sobre a confluência torrencial entre prosa e poesia, a ponto de a escrita de Mandelstam irromper como uma verdadeira “sinfonia em prosa poética”. Se as torções líricas de Mandelstam logram virar a realidade pelo avesso, de modo a nos revelar o imaginário como uma das lavras mais pulsantes da vida, é preciso dizer que o destino trágico do escritor, sob o punho implacável do ditador soviético Josef Stalin (1878-1953), determina o litígio definitivo entre prosa e poesia na experiência humana. É como se, ao sentenciar que “a separação é a irmã caçula da morte”, Óssip Mandelstam se tornasse o profeta do desenlace de sua existência.
Em dado momento, o autor nos diz: “Eu não quero falar de mim mas seguir de perto o século, o rumor e a germinação do tempo. Minha memória é hostil a tudo o que é pessoal. Se dependesse de mim, eu me limitaria a franzir o cenho ao recordar o passado”. Ocorre que, quando recorda, Mandelstam afirma que caminha “de volta sozinho, pelo leito de um rio seco”, para logo retornar à “contemporaneidade”, que também desemboca no “leito de um rio seco”. Passado e presente, então, se transformam em celas contíguas de uma mesma prisão, cujo carcereiro bem pode ser o medo do futuro. Quando o rumor do tempo, que despontara com a esperança solar da utopia socialista instaurada pela Revolução de Outubro de 1917, se vê revertido no crepúsculo stalinista de sangue e chumbo repleto de fuzilamentos sumários e alicerçado pela escravidão em campos de concentração espraiados como metástases pelas regiões mais longínquas e inóspitas da Sibéria, todo aquele que fala da história, totalitária como nem sequer o Deus do dilúvio sonhou em ser, acaba tendo de falar de si mesmo, ainda que seja para assinar a farsa e o horror da autoconfissão imposta pelo Estado policial.
Mandelstam desde sempre é artista talhado para ser mais uma vítima da utopia revertida em distopia. O poeta, um antinarciso por excelência, busca o lirismo das coisas — um tino poético que poderíamos chamar de “pulsão da matéria inanimada”. É uma trilha incompatível com o anti-individualismo e o materialismo estéril exigidos pela arte oficial, o realismo socialista. Mandelstam se vê coagido a aguilhoar o rumor de seu tempo à subjetividade de um Estado pautado pelo princípio de presunção da culpa. Na União Soviética stalinista, a máxima jurídica “na dúvida, a favor do réu” dá lugar a uma regra kafkiana: “Na dúvida, torpor ao réu”.
Stalin, que na juventude publicara poemas louvados em sua Geórgia natal, discernia em Mandelstam o gênio poético. Não à toa, o ditador ordenou, no início dos anos 30, que o autor fosse arregimentado nas fileiras laudatórias do realismo socialista: diante da distância — a bem dizer, do abismo — entre realidade pós-revolucionária e utopia, a nova literatura deveria infundir a fé na vitória futura do comunismo, como um Juízo Final sem Deus. Aos poetas, cabia ressoar as trombetas de Jericó do futuro auspicioso, do contrário a Sibéria invernal se imporia como a terra do nunca — ou, pior, do para sempre — da utopia.
Mandelstam, porém, não se conformou em ser um cordeiro do regime da foice e do martelo. Segundo Paulo Bezerra, o autor, por meio de uma atitude tão tresloucada quanto heroica, escreveu, em 1933, “um poema em que, além de reclamar do cerceamento da liberdade de informação e expressão (‘Sem sentir o país sob os pés vivemos nós / A dez passos não se ouve a nossa voz’), apresenta Stalin com seus ‘dedos gordos como vermes’ e ‘bigode de barata em eterno rir’ ”. O poema foi lido a um grupo de conhecidos que, em pânico, teriam recomendado a ele que o destruísse de imediato. Não se sabe se um deles foi o Judas que soprou os versos nos ouvidos de Stalin. O ditador ordenou então que Mandelstam fosse “isolado mas preservado”. A segunda parte da ordem não se realizou. Ele não duraria muito ao ser deportado para um campo de prisioneiros/escravos nas imediações de Vladivostok, no leste siberiano. A morte fora supostamente causada por “falência cardíaca”. Seu destino corrobora uma máxima de Mandelstam que funciona como lápide para as esperanças de uma geração que acreditou, com e contra a própria vida, na transformação social e estética do mundo: “Apenas na Rússia se respeita a poesia. Por ela se mata”.
Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626
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