Escuto Beethoven desde pequeno. Meu pai era maestro e uma parte habitual da nossa vida familiar na Estônia, onde cresci nos anos 70, consistia em nos sentarmos em volta do aparelho de som para ouvir juntos gravações. Na Estônia sob ocupação soviética havia um forte foco no repertório russo, mas, ainda assim, o compositor de maior destaque sempre era Beethoven. Quando criança, eu ouvia religiosamente as famosas gravações de Fürtwangler e Karajan, maestros lendários que ganharam reputação como os maiores intérpretes da música de Beethoven, e isso influenciou muito a maneira como eu ouvia sua música. Foi só quando cheguei aos Estados Unidos, em 1980, que tive contato pela primeira vez com as interpretações do movimento musical clássico “autêntico”, incluindo apresentações de maestros como Harnoncourt e Norrington. A abordagem e o som deles eram tão radicalmente diferentes que foi como um novo despertar que me fez questionar verdades comuns com as quais eu havia crescido.
Em minha experiência como maestro na Filarmônica de Câmara de Bremen, logo ficou claro que era muito fácil programar as sinfonias ao redor do mundo, pois Beethoven tem uma espécie de toque mágico. Daí surge a pergunta: por que confiamos tão explicitamente em Beethoven e por que ele ainda é tão popular? A conclusão a que cheguei é que há uma qualidade na música de Beethoven que faz com que você sinta que ele está dizendo a verdade — e não há dúvida de que sua música tem uma força tão convincente a ponto de ninguém questionar seu valor ou mensagem. Também parece que é subconsciente, pois sua popularidade não é resultado de um filme como Amadeus, que levou a música de Mozart às massas. Esse nunca foi o caso de Beethoven. De algum modo, ele tem uma credibilidade inerente: as pessoas acreditam intuitivamente nele.
Neste momento, o legado de Beethoven parece mais relevante que nunca, à medida que nos tornamos cada vez mais céticos a respeito das coisas infundadas que ouvimos de líderes políticos e que lemos nas redes sociais. O que nós precisamos agora é de algo em que possamos acreditar, e Beethoven preenche essa lacuna. Da mesma forma que são importantes para nós agora, os temas da liberdade e dos valores democráticos também foram pilares em que Beethoven acreditava piamente e que foram incorporados à sua música há mais de dois séculos — a Ode à Alegria, da Nona Sinfonia, o gesto político que ele realizou ao eliminar o nome de Napoleão da Eroica e sua crença, exaltada na partitura de Fidelio, de que o amor verdadeiro pode triunfar sobre a ditadura. Ele sonhava com um futuro melhor, equiparável a sua habilidade musical e senso de humanidade.
Alguns perguntam se precisamos celebrar Beethoven, já que, de qualquer forma, ele é tocado com tanta frequência. A meu ver, a questão não é essa. Precisamos celebrar os símbolos da nossa cultura, ainda mais quando a maior parte da cultura popular tem muito pouco valor musical. O que continuamos a aprender através da sua música é o padrão de referência em termos de qualidade, e é por isso que devemos aproveitar qualquer oportunidade para celebrá-lo.
Sem dúvida alguma, o ciclo completo de sinfonias e aberturas de Beethoven que gravei à frente da Filarmônica de Câmara de Bremen é a mais importante prova musical da minha vida até o momento, motivo de orgulho para mim. Ao continuar a reger Beethoven, ainda me pego repensando muitas das coisas que fiz antes e experimentando novas abordagens. Esta é mais uma prova da grandeza das suas composições: há tantas camadas e o material é tão rico que as maneiras de olhar para ele são inesgotáveis. Com a música de alguns compositores, a interpretação permanece igual a cada retorno. No caso das sinfonias de Beethoven, você pode tocá-las de maneiras radicalmente diferentes e continuar a aprender algo novo. Essa não é, afinal, a marca inequívoca de um gênio?
* Paavo Järvi, 57 anos, é maestro titular da Filarmônica de Câmara de Bremen, Alemanha
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717