Bons tempos em que, para ser um artista famoso e querido, bastavam carisma e um ou outro trabalho benfeito. Agora que a vida de cada um é escancarada nas redes sociais, a celebridade, para agradar aos fãs, precisa erguer bandeiras e não se calar diante de questões polêmicas que afetam seu público. Senão, já sabe: será cancelada. Cancelamento, nos dias de hoje, significa isolar uma pessoa do convívio de um grupo. Quando o cancelado é muito popular, o ato se restringe a um boicote a ele nas redes sociais que incomoda, mas passa. Mais grave é quando o tal cancelamento aponta a mira para amigos, familiares e colegas de turma, extrapolando o ambiente virtual e infernizando o cotidiano do exilado. “O adolescente é quem mais confunde os dois universos. Quando ele cancela alguém na internet, acha que pode transportar esse comportamento para a vida off-line”, ressalta Antônia Burke, diretora do Colégio e Curso de A a Z, do Rio de Janeiro.
A chamada cultura do cancelamento chega a ser mais dolorosa ainda do que as situações de zombaria e intimidação do bullying, por verbalizar com todas as letras, em mensagens nas redes sociais, que uma pessoa foi colocada no ostracismo e convocar o grupo para apoiar e replicar o gesto. O sujeito cancelado é então limado da rede de amigos, e seu número de seguidores, curtidas e comentários despenca. De tão em uso, cancel culture foi a expressão escolhida pelo dicionário australiano Macquarie como a que mais moldou o comportamento humano neste ano — em 2018, foi #Me Too, a hashtag do movimento antiassédio que se espalhou pelo mundo. O advogado Glauco Beraldo, de 25 anos, é declaradamente adepto do cancelamento: cortou o contato com uma prima e uma amiga de faculdade por apoiarem Jair Bolsonaro. “Sou gay e, embora as alertasse do risco de perder direitos que eu corria, elas votaram nele. Cancelei as duas”, diz.
Nas escolas, é comum que grupos cancelem a ex-namorada do amigo ou um colega que diz alguma coisa politicamente incorreta. Professora de psicologia da PUC-SP, Ceres Araújo ressalta que há casos em que o cancelado nem sabe direito o que motivou o boicote. “Basta que alguém pronuncie a palavra para o cancelamento se espalhar como um vírus”, observa. Exemplo de celebridade cancelada (veja outras abaixo), a cantora Anitta foi alvo de boicotes nas redes por não se posicionar na polarizada eleição de 2018. Atenta aos riscos em potencial à sua popularidade, ela aprendeu a lição — recentemente condenou a ação policial que resultou na morte de nove jovens na favela de Paraisópolis, em São Paulo. “Quando alguém cancela um artista, está reafirmando sua posição no mundo e nos grupos que pensam da mesma forma”, explica o escritor e filósofo Francisco Razzo.
De tanto cancelamento, até o ex-presidente Barack Obama, dos Estados Unidos, tratou do assunto em uma entrevista em que criticou a tendência dos jovens de se acharem donos da verdade investidos da obrigação de repudiar tudo o que vai contra suas convicções (uma proposta que também tem nome em inglês, woke, de “acordado”). “O mundo é bagunçado, cheio de ambiguidades”, disse Obama. O hábito de patrulhar e cancelar, segundo ele, não é ativismo e não promove mudança real. “Se tudo o que você faz é atirar pedras, não vai chegar muito longe”, alertou. Os cancelados agradecem.
Felipe Neto
Comentários homofóbicos feitos no passado levaram a um boicote ao youtuber. Ele se reabilitou comprando e doando o gibi censurado na Bienal por ter heróis se beijando na capa
Taylor Swift
Fãs não perdoaram uma rixa com Kanye West, o rei das polêmicas. Ela não escondeu a mágoa de ser cancelada. “Não é um programa de TV. É um ser humano”
Kanye West
Já comprou briga nas redes por apoiar Donald Trump e por falar abobrinhas sobre escravidão. “Fui cancelado antes da cultura do cancelamento”, orgulha-se
Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665