Do cume de sua sinceridade e autossuficiência, o designer francês Christian Louboutin não vacilou um segundo quando lhe indagaram a respeito da obra-prima assinada por ele, o stiletto de salto alto, imitado à exaustão: “Nenhum sapato com salto de 12 centímetros é confortável, mas as pessoas não me procuram para ter um par de chinelos. Não quero que olhem para minhas peças e exclamem: ‘São realmente confortáveis!’. O importante é que digam: ‘Uau, são lindos!’”. Corria o mês de fevereiro, naquele outro mundo antes da pandemia, e o estilista celebrava a inauguração de uma exposição retrospectiva em Paris como celebração de seus trinta anos de trabalho. Louboutin estava nas nuvens, ao ser tratado como um Matisse ou um Picasso, e de lá não sairia, por merecimento e influência — apesar das dores impostas às articulações femininas. Mas eis que veio o vírus para mudar inapelavelmente o eixo do planeta, inclusive na moda. E o salto alto teve de descer ao chão, modestamente — sobretudo os mais altos e de espessura finíssima, verdadeiras agulhas.
O tropeço foi grande. A consultoria americana NPD Group estimou a queda de venda desses modelos no segundo trimestre de 2020 na casa dos 70% em comparação ao ano passado. Não se trata apenas de um efeito colateral das quarentenas impostas ao longo deste ano e que tornaram a vida em escritório, festas e todo tipo de encontro impraticável. Trata-se de uma nova faceta da moda que exalta a casualidade nos estilos e a valorização do conforto. A ideia, a rigor, já vinha sendo desenhada. Em 2019 registrara-se uma derrapada desse tipo de artigo em torno de 12% em relação ao ano anterior.
E o que anda por aí, como substituto? As versões que ganharam espaço são em especial as desenhadas com bico largo, que dá segurança ao pisar. A celebração da elegância desses sapatinhos mais básicos acaba de ser referendada pelas semanas de modas mais aguardadas do mundo, em Londres, Milão e Paris, ocorridas entre o fim de setembro e o início deste mês de outubro. Nas passarelas, marcas como as francesas Chanel e Dior e a italiana Prada exibiram volumoso número de modelos ao rés do chão. “A passarela está cada vez mais conectada com o que se usa nas ruas. Na vida real ninguém mais acha aceitável equilibrar-se sobre sapatos desconfortáveis para sugerir elegância ou poder”, diz a consultora de moda Mônica Boaventura. A mudança é emblemática, já que boa parte da sedução (para homens e mulheres) do salto alto, aquela louvada por Louboutin, é concentrada no gingado para manter-se firme sobre alturas.
Convém acompanhar a atual reviravolta com olhar enciclopédico. O salto alto foi criado para os homens. Entre soldados persas no século X, eles eram grandes aliados por elaborar uma espécie de trava nos estribos dos cavalos, o que permitia uma maior segurança ao disparar flechas. Ganhou requinte somente no reinado de Luís XIV (1643-1715), da França, quando se tornou símbolo de nobreza e glamour. As mulheres só passaram a adaptá-lo ao seu gosto alguns anos depois, e então eles foram progressivamente deixando de vesti-lo, abrindo alas para o universo feminino. Hoje, decidir calçar ou não plataforma de tanta altitude virou manifesto. Diz a consultora de estilo e professora do Centro Universitário Belas Artes, de São Paulo, Tathiana Santos: “Ao questionar o uso do salto alto, as mulheres não estão demonizando o acessório, mas apenas defendendo o direito de usá-lo apenas por estilo, quando bem quiserem”. Assim caminha a humanidade, ora lá em cima, ora cá embaixo.
Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709