Ensimesmado e genial, João Gilberto teve uma trajetória pontuada por histórias curiosas, passagens intempestivas e polêmicas ruidosas. O inventário do artista, que morreu em 2019, aos 88 anos, segue o mesmo roteiro, entremeado de reviravoltas que deixam claro que a pendenga está longe de um fim. Em um novo e inédito capítulo, duas mulheres reivindicam na Justiça o posto de companheira oficial do gênio maior da bossa nova, aumentando a já robusta lista de potenciais herdeiros. Além dos filhos — a cantora Bebel, o músico João Marcelo e a estudante Luísa, de 20 anos — e da moçambicana Maria do Céu Harris, 61, entra na disputa a jornalista e artista plástica Claudia Faissol, 52, mãe da caçula. Em abril, Claudia ingressou com uma ação na 18ª Vara de Família do Rio requerendo o reconhecimento da união estável com o cantor entre 2006 e 2017. Na mesma jurisdição, corre desde 2019 o processo de Maria do Céu, que alega ter tido uma vida em comum com João desde 1984, quando o conheceu em um show em Portugal, até a sua morte, somando 35 anos entre idas e vindas. A disputa pelo posto de mulher do músico põe ainda mais decibéis no já barulhento processo de partilha.
Sem nenhum imóvel em seu nome — ao contrário, há dívidas pendentes do apartamento em que ele viveu no Leblon, Zona Sul carioca —, o espólio do dono do banquinho e do violão gira em torno de um patrimônio centrado em milionários direitos autorais. “Tomei a decisão de requerer a união estável para trazer a verdade dos fatos e não permitir que ninguém apague nossa história. Tive uma relação pública e contínua com o João, da qual nasceu nossa filha”, afirmou Claudia a VEJA. Ao processo foram anexados documentos e dezenas de fotos da convivência em família e de viagens juntos, além de uma lista de testemunhas que prometem provar a união.
No lado oposto do ringue, Maria do Céu, que nunca trabalhou, já havia apresentado ao Judiciário extratos de contas, despesas de viagens, comprovantes de residência e fotografias. A moçambicana está em aparente vantagem: em 2022, a Justiça concedeu uma liminar determinando a reserva de um quinhão, no caso, equivalente a 50% da herança do músico até que o mérito seja julgado. “Querem me retratar como uma qualquer, algo que jamais fui. Como alguém pode dizer que viveu com ele por mais de trinta anos se eu estava diariamente no apartamento do João por mais de uma década? Minha filha, que ia comigo, jamais viu a Maria do Céu”, rebate Claudia.
Nesse enrosco, as posições dos filhos são bem definidas. Embora Claudia não faça menção ao assunto, sabe-se que um dos estopins para que decidisse entrar no páreo foi o fato de Bebel ter declarado, em setembro de 2023 — e sua defesa ter reafirmado em audiência em abril —, que reconhecia a união estável do pai com Maria do Céu. Luísa, que estuda cinema, posiciona-se, como era de se esperar, do lado da mãe. João Marcelo rechaça os dois nomes. Ele já declarou que Maria do Céu nunca foi mulher de seu pai e a tachou de “garimpeira, só procurando dinheiro”. Também acusou lá atrás Claudia de lesar financeiramente o pai e pôs em dúvida até a paternidade da irmã caçula, comprovada em exame de DNA. Sobre a demora da mãe de Luísa a pleitear a união estável, sua advogada, Lorena Bethge Tolentino, explica: “Ela jamais acreditou que fossem tentar usurpar sua história, já que foi de fato a mulher do músico por mais de uma década. Também não queria ter sua vida e a de sua família exposta”.
O entrevero entre os vários herdeiros não para aí. Bebel e a irmã Luísa duelam na Justiça para assumir o posto de inventariante, até agora em mãos de um profissional que não é da família. Uma decisão da 1ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio decidiu há um mês pela cantora, mas a caçula recorreu. “Questionamos o motivo da escolha, já que a Luísa é adulta e plenamente capaz”, ressalta Leonardo Amarante, advogado da estudante. Claudia, por sua vez, explica que a medida foi tomada porque Bebel nunca aceitou que ela participasse das reuniões do espólio, mesmo tendo uma procuração da filha. Em paralelo, o primogênito, João Marcelo, atiçou a ira dos demais ao postar nas redes sociais um tesouro que deveria estar no inventário: uma mala cheia de fitas cassete gravadas pelo próprio João Gilberto. “Ele resgatou essas fitas, que estavam sumidas do apartamento do pai, só não posso dizer de onde. Não está escondendo nada, tanto que postou no Facebook e, se a Justiça determinar que entregue ao espólio, o fará”, alega Deborah Sztajnberg, que o defende.
Novos e longos rounds da pendenga envolvendo o legado do pai da bossa nova ainda estão por vir. Apesar de os herdeiros terem tido reconhecido, em 2023, o direito a receber 150 milhões de reais (60% caberão ao Banco Opportunity), indenização estipulada para uma ação que João Gilberto movia contra a extinta EMI, o grupo Universal Music ainda questiona o valor. No embate entre Maria do Céu e Claudia Faissol, que emperra a conclusão do inventário, a disputa também promete ser acirrada, já que uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2020, determina ser impossível reconhecer duas uniões estáveis simultâneas. O juiz pode decidir por uma, por outra ou por nenhuma. Nesse enredo de encrencas, não há paz, não há beleza.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900