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Nova pesquisa traz polêmica sobre a arte consagrada de Turner e Monet

Estudo sustenta que as paisagens cheias de névoa dos artistas são mera reprodução de seu poluído entorno — uma redução de dois gênios revolucionários

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h16 - Publicado em 9 jul 2023, 08h00
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  • Embalado pela Revolução Industrial, o efervescente século XIX chacoalhou pilares em série, trazendo profundos desdobramentos ao mundo das artes, capitaneados por uma entusiasmada turma disposta a romper com a tradição. Eis que aí surgiram artistas que passaram a respirar os ares da modernidade sem o objetivo de copiá-la, mas de cravar na tela a maneira muito singular com que observavam a realidade, à base de pinceladas soltas e uma dança nova de luz e cor. O inglês William Turner (1775-1851), expoente do romantismo, libertou-se do tracejado rígido com suas turbulentas pinturas marinhas e trens envoltos em fumaça indo e vindo. Em seu período londrino, o francês Claude Monet (1840-1926) analisou com lupa a obra de Turner, a quem nunca conheceu, e dali extraiu inspiração para quadros fundamentais para o movimento impressionista, que acabaria por plantar as sementes do que hoje se entende por arte moderna.

    Muito criticados naqueles tempos em que chocavam o olhar convencional — segundo os detratores, os impressionistas eram meros autores de borrões que não passavam de papéis de parede mal-acabados —, Turner e Monet, hoje reconhecidos como grandes mestres, voltam aos holofotes, de novo na berlinda. Um artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences sugere que os dois artistas não foram tão disruptivos assim, já que estavam sendo coerentes com a realidade tal qual se apresentava, sem inovar. Ao analisar um total de quase uma centena de obras, o texto, que abraça a tese do “realismo poluído”, diz que o que parece ser uma evolução de estilo nada mais é do que um retrato então tomado de poluição. Naturalmente, o estudo, que reduz a arguta visão dos geniais artistas, acendeu o caldeirão de uma inflamada polêmica, que enfureceu uma ala séria dos historiadores da arte. “É tudo uma bobagem”, atiraram os mais renomados.

    O trabalho, resultado de uma parceria entre cientistas dedicados à pesquisa da atmosfera das universidades de Harvard, nos Estados Unidos, e Sorbonne, na França, ampara seu principal argumento na má qualidade do ar no período analisado, entre 1796 e 1901. A produção de carvão para fazer girar motores a vapor subia então noventa vezes só no Reino Unido, tornando o nevoeiro um fenômeno usual nos céus de Londres. Para adentrar as artes, os pesquisadores criaram dois termômetros — de nebulosidade e brancura —, aplicaram tais medidores às telas e se debruçaram sobre os dados históricos de poluição. A pirueta matemática concluiu que 61% da névoa e das pinceladas alvas teriam relação direta com a elevação de concentração de dióxido de enxofre no ar. “A poluição faz com que os objetos pareçam menos precisos, sem bordas, e dá às cenas uma tonalidade esbranquiçada”, justificou a VEJA a coordenadora do levantamento, Anna Albright, da Sorbonne.

    A TURMA - Impressionistas: Manet e Monet (à frente)
    A TURMA - Impressionistas: Manet e Monet (à frente) (Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images)

    Tanto Turner como Monet atentaram, em algum momento, para o ambiente poluído que os cercava. Trilharam tal percurso quase como um laboratório, para flagrar a incidência da luz sobre a intrigante paisagem que não se cansavam de explorar. Isso não significa, nem de longe, que a névoa cinzenta das fábricas esteja na origem do ímpeto revolucionário dos dois artistas. “Há um evidente exagero na afirmação de que há relação de causa e efeito entre a poluição e as escolhas estilísticas de Turner e Monet”, enfatiza o historiador da arte Felipe Martinez, da Universidade de Amsterdã. Mesmo no cenário pré-Revolução Industrial, é bom lembrar, Turner já priorizava sentimento e dinamismo no lugar do compromisso com o que literalmente enxergava.

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    Os impressionistas, que, depois de banidos dos salões oficiais de Paris, se lançaram como um grupo em uma célebre exposição alternativa em 1874, viviam com seus tubos de tinta pelas ruas em busca de cenários que propiciassem a captação da luz em instantes diversos, retratando cenas que imprimiam na tela do modo como as sentiam. Nomes como o do precursor Édouard Manet, que tanto influenciou os demais, entre eles Degas, Renoir e Pissarro, se notabilizaram por pinceladas curtas e rápidas e se detinham sobre a cor como uma ciência, de maneira a ressaltá-la. Admirar um impressionista requer dar uns passos atrás para que a imagem se forme inteira na retina. Por tudo isso, esses artistas — que, aliás, pintavam muito além de paisagens tingidas de poluição, o que passa ao largo da polêmica pesquisa — escreveram um decisivo capítulo. Praticamente cego, na velhice, Monet derivaria para o quase abstracionismo com suas imprecisas ninfeias, outra herança fundamental do autor de múltiplas criações. “O estudo seleciona casos isolados de poluição urbana para enquadrar todo um movimento artístico”, resume Martinez.

    Uma série de artigos publicados em resposta à pesquisa pontua se estar diante de uma simplificação de um processo complexo. Em carta aberta, Albright, a própria autora, recentemente relativizou seu trabalho, dizendo ser “complementar” à história da arte. “Claro que não é possível saber o que estava no coração desses artistas”, reconheceu. Para Michael Marmor, autor do livro Os Olhos do Artista: a Visão e a História da Arte, a ciência só pode explicar a expressão artística até certo ponto. “Com o avanço de novas tecnologias, aumentou o afã de empregar métricas para dar sentido à subjetividade humana”, pontua. Pinturas são, afinal, delicados registros dos sentimentos e da imaginação, algo que gênios como Turner e Monet elevaram a um inédito patamar.

    Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849

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