Nos anos 60, quando ainda lutava para sobreviver como quadrinista, Mauricio de Sousa não entendeu ao ser chamado por um colega de algo esquisito: misógino. “Não sabia o que significava a palavra. Fui ao dicionário procurar, e descobri que era alguém que não gostava de mulher”, recorda-se. De fato, até então Mauricio só desenhava tipos masculinos — e começou a se incomodar com a (má) fama. Logo constatou que a chave para uma transformação estava em sua própria casa. Da filha Mônica, então aos 2 anos, veio a criação que mais tarde se tornaria inescapável nos quadrinhos: uma menina baixinha, gordinha e dentuça batizada com o nome da filha. “Todo personagem precisa ter características marcantes”, explicou Mauricio a VEJA.
E como aquela menina se revelou marcante. Parece incrível, mas a Mônica está prestes a virar sessentona, conservando aquele mesmo corpinho e jeito de menina — e o mais notável: sem perder o charme que conquistou geração após geração de brasileiros. A estreia da personagem aconteceu numa tirinha do Cebolinha, em março de 1963. E ela já mostrava a que veio: dava uma baita coelhada no desaforado coleguinha. Já naquela época, a ariana Mônica carregava as características que a acompanhariam pelos anos seguintes: bravinha, passional e muito forte.
Seis décadas depois, a eterna rivalidade (que muitos creem ser, no fundo, amor) entre Mônica e Cebolinha continua a mesma. Mas um detalhe importante mudou radicalmente: se no passado seu criador foi acusado de misógino, agora faz questão de adequar Mônica às conquistas femininas da atualidade. Há anos que ela não aparece batendo nos coleguinhas, e Cebolinha parou de fazer bullying com a amiga. “Mônica agora pode até girar o coelhinho, mas bater, não”, diz Mauricio. Para além das mudanças visuais da personagem, que ganhou traços mais suaves (como mostra a ilustração feita com exclusividade pelo autor para esta reportagem de VEJA), ao longo do tempo Mônica foi de menina briguenta a símbolo de empoderamento: é daquelas garotas que não levam desaforo para casa e batalham contra o machismo.
Turma da Mônica – Fábulas Inesquecíveis
Hoje aos 62 anos e diretora-executiva do império paterno dos quadrinhos, a filha Mônica Sousa ganhou com o tempo o papel de porta-voz da causa feminista nos negócios que giram em torno do “Mônicaverso”. Criou há alguns anos o Donas da Rua, projeto que conta a história real de mulheres importantes da cultura, ciência, esporte e política sob a forma de personagens da Turma da Mônica. “Tive essa ideia ao descobrir que a partir dos 6 anos, quando pediam para uma menina desenhar um super-herói, elas sempre faziam uma figura masculina, porque as histórias sempre são contadas por homens”, diz ela.
Se os quadrinhos passaram a incluir também personagens cegos, cadeirantes e autistas, ainda há críticas em relação ao ritmo lento com que algumas mudanças comportamentais são incorporadas ao mundo da Mônica. Mauricio reconhece essa demora, e se defende dizendo que seus gibis “não levantam bandeiras”. A demanda antiga dos fãs por um personagem gay não tem data para acontecer. O mais próximo disso ocorreu em uma graphic novel (gibi voltado para adultos) da Tina, a jornalista riponga da turma, em que um personagem dá a entender ser gay. “Vamos fazer no tempo certo, não podemos fugir da realidade”, desconversa Mauricio — que, no entanto, fora dos quadrinhos não se furta a defender o filho Mauro Sousa dos ataques de ódio que sofre por se assumir homossexual.
Mauricio: A história que não está no gibi
Enquanto essas mudanças seguem em ritmo comedido, as primeiras revistinhas da Mônica serão relançadas em livros com notas de rodapé que contextualizam as atitudes dos personagens à época da publicação. Já nas novas HQs, comportamentos mais modernos foram incorporados. “Agora, o Cebolinha chega em casa e vê o pai lavando a louça”, diz Mônica (a real). Nas histórias ambientadas na roça, Nhô Lau, que no passado dava tiros de sal em Chico Bento, agora não usa mais armas.
Criador de um império milionário, com parques temáticos em Gramado (RS) e São Paulo e licenciamento de seus personagens para centenas de marcas, além de um impressionante número de 12 milhões de quadrinhos vendidos por ano no Brasil, o pai da(s) Mônica(s) agora concentra seus esforços no cinema. Lições, segunda produção live-action da personagem, foi o filme brasileiro mais visto em 2022, com 761 000 espectadores. Uma cinebiografia do cartunista também já foi filmada — com o filho Mauro interpretando o pai na juventude. Por fim, na semana passada o ator Isaac Amendoim foi escolhido para interpretar Chico Bento no filme homônimo previsto para 2024.
Não é fácil manter Mônica em forma aos 60 anos. Ao contrário de personagens estrangeiras como Mafalda e Luluzinha, que não têm mais histórias inéditas, os gibis da Mônica continuam sendo criados. E já caminham sem Mauricio: hoje estão sob supervisão da filha Marina, responsável pela parte editorial do estúdio do pai. “Ela desenha como eu”, elogia ele. Aos 87, Mauricio ainda tem uma batalha a vencer: conquistar seu lugar no olimpo dos autores brasileiros. Movido por esse sentimento, já mexe os pauzinhos para virar imortal da Academia Brasileira de Letras. Na semana passada, enviou uma carta apresentando sua candidatura ao presidente da ABL, Merval Pereira. Ameaçou desistir, mas seguiu adiante após sugestivos afagos dos acadêmicos. Diante da quantidade de gente que tomou gosto pela leitura a partir das historinhas da Mônica, ninguém duvida de sua contribuição para a literatura — ainda que por meio de coelhadas e travessuras.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833
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