A vida profissional pode ser bem complicada para filhos de pessoas talentosas que decidem seguir a profissão dos pais. O filho do Pelé optou por não fazer gols; o filho do Bob Dylan é um compositor medíocre; e o filho do José de Alencar foi um poeta dispensável. Nesse sentido, o escritor inglês Martin Amis (1949-2023) pode ser considerado o nepo baby — expressão que designa os filhos de famosos — que deu certo. Seu pai foi o renomado romancista Kingsley Amis, e sua madrasta, a também proeminente escritora Elizabeth Jane Howard. Amis não só trilhou o caminho de ambos: superou-os com louvor.
Autor de catorze romances, quatro coletâneas de contos e oito livros de ensaios, Amis é frequentemente chamado de “Mick Jagger da literatura”. A comparação faz sentido. Afinal, ele é lascivo sem ser vulgar; é pop sem descuidar da erudição; é agressivo, jamais violento. E, se Jagger canta e dança para hipnotizar seu público, Amis domina a técnica narrativa para mesmerizar seus leitores. Quem atravessou as quase 400 páginas de A Zona de Interesse — recentemente adaptado para as telas por Jonathan Glazer e ganhador do Oscar de melhor filme internacional — sabe que, uma vez iniciados, os livros de Amis são consumidos avidamente. É um autor magnético, talvez o melhor em sua fabulosa geração de prosadores britânicos, que reúne nomes como Julian Barnes, Maggie Gee, Ian McEwan, Rose Tremain e Salman Rushdie.
A Zona de Interesse – Martin Amis
A obra Os Bastidores — Como Escrever, lançada em 2020 e publicada agora no Brasil, fecha o trabalho de Amis com brilhantismo. Apesar do subtítulo, ninguém vai aprender a ser um escritor ao lê-la. Afinal, o título original — Inside Story: a Novel, algo como “Bastidores: um Romance”, em tradução livre — deixa claro que se trata de uma obra de ficção. E, mais especificamente, de um romance autobiográfico. Morto em decorrência de um agressivo câncer em 2023, Amis já sabia que tinha pouco tempo restante quando escreveu seu último livro. Assim, optou por fazer um balanço de sua vida, amizades, influências (Vladimir Nabokov à frente) e amores. É um testamento literário.
Os Bastidores: Como Escrever – Martin Amis
O próprio autor e sua família protagonizam o livro, além de dois de seus melhores amigos, o escritor americano Saul Bellow e o também autor e jornalista inglês Christopher Hitchens. Há muitas personagens e passagens fictícias, mas, por ser um livro fortemente ancorado na realidade, foi chamado aqui e acolá de autoficção — algo que obviamente desagradou ao artífice da coletânea de ensaios The War Against Cliché (A Guerra contra o Clichê). Em suas palavras: “O livro é sobre uma vida, a minha, então não vai ser lido como um romance”. O autor pouco fala sobre sua adolescência e estudos universitários: concentra-se na infância tumultuada de filhos de pais separados e em sua bastante agitada vida adulta, incluindo muitas viagens e uma mudança continental.
The War Against Cliché – Martin Amis
Com didatismo e muita ironia (algo inscrito no DNA dos britânicos), Amis faz o relato brincando com suas próprias dicas literárias. Por exemplo: logo após advertir que um escritor deve evitar “qualquer referência à mecânica de fazer amor, a menos que contribua para nossa compreensão do personagem ou da situação afetiva”, ele inicia um capítulo descrevendo a aproximação, o interesse mútuo e a conjunção carnal entre um casal. Em outro momento, afirma que Saul Bellow foi corajoso ao escrever vários livros sobre pessoas reais e conhecidas, correndo riscos — exatamente o que Amis faz em Os Bastidores.
Os dois grandes temas da literatura (e da vida) norteiam o romance: amor e morte. Eros e Tânatos estão sempre presentes no relato, com o autor falando do seu amor pelas palavras, pelas ideias, por suas mulheres, filhos e amigos, mas também discorrendo sobre a morte de pessoas queridas e sobre sua relação com a finitude.
Três relatos são bastante impactantes pela carga afetiva e pela descrição quase clínica do declínio físico e mental. Amis fica tocado ao acompanhar a grande mente e personalidade de Bellow esfumaçando-se diante do Alzheimer. E também descreve os dias finais do poeta inglês Philip Larkin e do jornalista Hitchens. Ambos tiveram a mesma doença, câncer de esôfago — mesmo tipo, aliás, que viria a vitimar o próprio Amis. Mas, enquanto Larkin é retratado como um sujeito retraído, depressivo e com sérios problemas de relacionamento com o sexo oposto, seu amigo Hitch transborda energia e mantém o bom humor mesmo diante de algo que está prestes a aniquilar sua existência.
Últimas palavras – Christopher Hitchens
Com sua vida e sua escrita, Amis demonstra que não há vencedor possível no duelo entre Eros e Tânatos. Não há sequer um embate, pois eles se complementam e um não existe sem o outro. Para ele, é justamente do encontro de Eros, “a força mais potente e mais inefável da natureza”, com Tânatos que resulta a arte, a magia humana que sobrevive ao tempo.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907