A primeira vez que fui ao zoológico, no Rio, foi com meus pais. Eu devia ter uns 5 anos. Na Quinta da Boa Vista, o lugar tinha uma área verde logo antes da bilheteria, onde ficavam os cervos. Fiquei observando um filhote que estava perto da grade. Então, meu pai jogou uma pedrinha na direção do animal para que ele corresse e saltasse. Só que fiquei revoltado, comecei a chorar, mesmo vendo que não tinha acontecido nada. Na melhor das intenções, ele queria provocar um espetáculo só para mim. Foi quando percebi que meu pai tinha alma de artista.
Ao longo do tempo, vi que ele encarava a vida de forma lúdica. Mesmo em uma família pobre e numerosa, com dezessete filhos, dos quais apenas onze chegaram à vida adulta. O pai dele era barbeiro e violinista do cinema mudo. A mãe passou a vida tendo filhos. Meu pai gostava do neorrealismo italiano, porque aqueles filmes misturam tragédia e comédia. Fazia questão de ver o lado engraçado das coisas. Por isso, tornou-se outra pessoa antes de morrer. Não era mais ele, era outro. Deixou de ter aquele olhar sempre inspirado e apaixonado sobre a vida e caiu numa depressão horrível.
Há vinte anos, apagaram 444 episódios da série As Aventuras do Tio Maneco, produzida e protagonizada por ele na TVE. Você quer um baque maior do que apagarem mais de vinte anos de seu trabalho e de outros atores? O programa, que era campeão de audiência na emissora, recebia centenas de cartas por semana de crianças do Brasil inteiro. Ele entrou na Justiça, e hoje, duas décadas depois, ainda não temos notícia da indenização.
Meu pai tinha a decisão filosófica de morrer quando quisesse. No final, ele não estava enxergando direito, não conseguia escrever no computador e também não escutava bem. Não queria ninguém cuidando dele, não queria acordar e ter alguém para tirá-lo da cama. Levei meu pai diversas vezes ao hospital, a quatro psiquiatras. Receitaram aquelas bombas antidepressivas, e ele teve noites terríveis. Chegava as 6 da tarde, ficava mal.
Quando meu pai fez sessenta anos de carreira, montou a peça Confissões de um Senhor de Idade, na qual passava a vida dele em revista, em uma conversa com Deus. Ele mesmo pediu para gravar entrevistas, queria falar, queria contar histórias. Às vezes, contava três ou quatro vezes a mesma coisa, todas de um jeito diferente. Nós escolhemos as melhores versões para entrar no filme Migliaccio: o Brasileiro em Cena, que acabamos de lançar. Eu falava: “Você não vai esperar o seu filme ficar pronto para ver a sua vida no cinema? Você não anda sem ser parado para dizer que o admiram”. Mas nada disso importava mais.
E nunca importou, de verdade. Ele ficou um pouco deslumbrado quando começou a fama, por causa da série Shazan, Xerife & Cia, na Globo, porque vinha de uma família muito pobre. Logo depois, no entanto, voltou a ser o que era. Não andava em badalação, em festa de artistas, não queria bagunçar. Era muito simples, uma pessoa doce. Não sabia se portar em um restaurante chique. Ele queria ficar no sítio, no meio dos caipiras, porque não precisava representar, ficar cheio de cuidados.
Acho que ele teve a felicidade de participar do Teatro de Arena. Depois, do Cinema Novo, fez filme com o Glauber Rocha, como Terra em Transe, atuou em peças do Vianinha com Gianfrancesco Guarnieri. Fez filmes do tio Maneco, um deles premiado na União Soviética. Fez séries de TV infantis que não eram consumistas. Fez uma obra infantil sem interesse financeiro, sem querer lucrar com a criança, só com mensagens positivas. Escreveu no último bilhete: “A impressão é que meus 85 anos não valeram nada”. Claro que valeram. Valeram muito, pai.
Marcelo Migliaccio em depoimento dado a Alessandro Giannini
Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748