Ainda na infância, a jovem Katy Hessel costumava folhear despretensiosamente as páginas do clássico A História da Arte, de Ernst Gombrich (1909-2001). Interessada pelas telas e pincéis, foi estudar o tema na faculdade, onde percebeu que o clássico sobre o tema — lançado em 1950 — não citava nenhuma mulher em sua primeira edição, e só uma na 16ª. “Achei um crime como elas foram apagadas da história da arte e resolvi criar minha própria versão”, diz a estudiosa de 29 anos. Da vontade de iluminar figuras femininas surgiram um podcast e um perfil no Instagram dedicados às artistas e, mais recentemente, um livro audacioso. Lançado no início do mês nos Estados Unidos, e ainda sem previsão de sair no Brasil, The Story of Art Without Men (“A história da arte sem os homens”, em português) faz o que o título propõe: reescreve séculos de história a partir de artistas mulheres ofuscadas pelos homens, revelando sua existência e importância.
O livro cobre mais de cinco séculos, desde os primórdios das artes dos 1500 até hoje. Mais que se aprofundar na vida e obra de figuras conhecidas como a italiana Artemisia Gentileschi (1593-1653), a brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973) e a francesa Camille Claudel (1864-1943), o trabalho apresenta artistas pouco faladas, mas de valor inexorável, como Lavinia Fontana (1552-1614), primeira mulher do Ocidente a pintar nus femininos, e Plautilla Nelli (1524-1588), que montou um ateliê só de mulheres na Florença do século XVI e foi das raras mulheres citadas por Giorgio Vasari (1511-1574) no clássico Vidas dos Artistas.
Artemisia Gentileschi: The Language of Painting
Relegadas aos papéis de mãe e esposa, as mulheres enfrentaram barreiras sociais desafiadoras para adentrar o mundo da arte. Até o século XIX, era negado a elas o estudo anatômico com modelos reais, o que dificultava o aperfeiçoamento de pinturas e esculturas. Havia, ainda, uma questão financeira: sem trabalho remunerado ou prestígio na sociedade, elas dependiam de pais endinheirados ou maridos que apoiassem a “aventura artística” — por isso, na maioria das vezes, as que conseguiam ascender no ramo eram advindas da nobreza ou burguesia e tinham homens influentes dando o suporte necessário. A barroca Artemisia Gentileschi era filha de artista. Incentivada pelo pai, Orazio, ela aprendeu a pintar no ateliê da família inspirada por parábolas bíblicas. Mais tarde, tornou-se a primeira mulher aceita na Academia de Belas Artes de Florença. Sua vida, no entanto, não foi fácil: aos 18 anos, foi estuprada por um colega do pai e enfrentou um julgamento de meses até que ele fosse condenado ao exílio. Daí em diante, desenvolveu uma arte dramática de ares caravaggescos (Caravaggio, 1571-1610), colocando-se em posição de poder diante de figuras masculinas. Mas sua arte, assim como a da grande maioria das mulheres, demorou a conquistar espaço nos museus.
No Brasil, artistas femininas ganharam projeção durante o modernismo, quando figuras como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral lideraram o movimento na pintura, revolucionando a arte nacional a partir dos anos 1920. Já nos Estados Unidos, a primeira galeria comercial dedicada a artistas femininas, a A.I.R. Gallery, surgiu apenas em 1972, fundada por mulheres que não tinham espaço no mercado tradicional. Segundo um estudo de 2019, 87% das obras dos principais museus americanos eram de autoria masculina. No mesmo período, as mulheres correspondiam a apenas 1% do acervo da The National Gallery — o museu de Londres, inclusive, fez sua primeira exposição individual dedicada a uma artista feminina apenas em 2020, sobre Gentileschi.
Assim, além das dificuldades práticas de se inserir no mercado da arte, as mulheres foram esquecidas por aqueles que registravam os fatos. “A maioria dos livros era escrita por homens. As exposições, curadas por homens, e a maioria dos museus era dirigida por homens”, afirma Hessel a VEJA. Ela vê uma mudança bem-vinda. “Há uma abundância de mulheres nos últimos 25 anos com grandes exposições. É importante que tenhamos pessoas nos bastidores e há mais mulheres que nunca no comando dos museus”, atesta. Enfim, é hora de iluminar a maestria feminina.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844
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