A escolha infeliz de uma foto para um pôster causou alvoroço e induziu ao preconceito contra o filme Mignonnes (Lindinhas, no Brasil), lançado pela Netflix há poucas semanas. Na imagem, quatro pré-adolescentes em trajes e poses sensuais, nada compatíveis com a idade delas, passam a mensagem de que o longa, premiado no conceituado Festival de Sundance, estaria sexualizando crianças. Recentemente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pediu a suspensão da veiculação do filme pela plataforma de streaming. Em meio às controvérsias, proponho aqui uma conversa mais ampla sobre o filme e seus temas urgentes para a realidade mundial — reconhecendo que cada um tem todo o direito de gostar ou não, concordar ou não com a obra. Mas só após assisti-la por inteiro. Ver só o trailer também não vale.
Na trama, Amy, a protagonista, vive praticamente sozinha com os irmãos mais novos, assim como outras meninas da vizinhança, na periferia de Paris. De família muçulmana, a jovem de 11 anos se contagia pela vivacidade de um grupo de garotas de sua faixa etária, que ensaia às escondidas para um concurso de dança. Sem a presença de familiares, os quais trabalham longas horas por dia, as meninas usam roupas diminutas, repetem comportamentos adultos e se rendem aos excessos das redes sociais. O filme não apresenta situações de abuso ou violência sexual e prostituição, temas que entrariam na seara da pornografia infantil. Mas ele é um verdadeiro tapa na cara, fazendo-nos (ou tentando fazer) acordar para o perigo de uma pré-adolescência desassistida. Perigo esse que inclui, de fato, a sexualização precoce e a pedofilização, e que vai além, impondo um futuro muito menos venturoso e gratificante do que aquele que as filhas e os filhos merecem.
A roteirista e diretora de origem senegalesa, Maïmouna Doucouré, de 35 anos, parte de suas próprias experiências de vida, na periferia de Paris, e dos relatos de pré-adolescentes entrevistadas durante um ano e meio. Ao escancarar essa realidade, ela acabou sendo mal interpretada por quem não acredita que a arte imita a vida e que, lamentavelmente, a vida para muitas pré-adolescentes é exatamente essa. E daí para pior.
A produção tem momentos desconfortáveis, com cenas intencionalmente ousadas, que exibem de forma insistente corpos e rostos jovens, em insinuantes ângulos, “caras e bocas”. A diretora optou por deixar de lado a mensagem subliminar para ser mais direta e crua em seu alerta quanto à objetivação do corpo feminino, o que induz o espectador menos cauteloso a uma opinião apressada. Essa insistente exposição do corpo, que caracteriza o filme e vem sendo considerada por muitos como abusiva, é comum na história das telas brasileiras, com propósitos os mais diversos, especialmente para a satisfação da vaidade de mães incautas (ávidas por tornarem suas filhas prodígios ou celebridades nacionais). Entretanto, a suposta inconsequente ousadia da roteirista merece uma reflexão.
Se de um lado Lindinhas escancara a sexualização precoce, de outro apenas resvala em temas não menos relevantes e próprios da pré-adolescência, seja na periferia de Paris, seja nos quatro cantos do Brasil: estão no roteiro o bullying ou vínculos utilitários entre crianças; a prática de pequenos delitos e seus riscos; dramas familiares insolúveis; choque de culturas e conflito de gerações; sensação de desamparo doméstico e busca pelo suporte social; banalização da importância da menarca (primeira menstruação); fascínio pelas redes sociais e mau uso delas; premência em superar a falta de perspectiva; necessidade “tóxica” de sucesso e fama; indignação com a ordem patriarcal e identificação com a mulher (mãe) submetida ao homem, pela revolta e pelo sofrimento inconfessos.
“A diretora do longa acabou sendo mal interpretada por quem não acredita que a arte imita a vida”
Com tantos argumentos levantados de início, faltou ao filme “costurar” de forma mais contundente as causas e consequências das ações das garotas, e dos adultos ao redor, assim como a complexidade e as contradições de suas atitudes. Ou a diretora propositadamente deixou para quem o assiste essa incumbência. A alguns espectadores precipitados, pouco atentos ou não afeitos à linguagem indireta pode ter escapado a mensagem de que as “Amys” de todo o mundo, especialmente as socioculturalmente menos favorecidas, se ressentem da ausência de motivação e incentivo para um desenvolvimento pessoal saudável, sem imitação aos hábitos e vícios dos adultos, hábitos e vícios esses facilmente acessíveis pelas redes sociais e pela falta de privacidade na convivência familiar. O espectador distraído pode não se sentir, ao final do filme, convidado a considerar que a confluência de estímulos paradoxais gera respostas infames (como trocar sexo por um celular ou postar fotos de partes íntimas) em quem não tem maturidade suficiente para administrar tantos conflitos. Para mim, a cineasta falha ao ser, no final, condescendente com os adultos, em vez de colocar o dedo mais fundo na ferida.
Coube, então, à personagem Amy viver e resolver sozinha todo o processo de seu amadurecimento e de sua reconciliação consigo mesma e com todos com quem tentara aproximação ou rompimento. Talvez a diretora tenha entendido que fosse cedo para encarar desfechos mais trágicos, extremos ou sem volta.
Excessos, atitudes erráticas e descontextualizadas, instabilidade e afrontas são próprios de quem tem pouca idade. Isso se resolve com educação e tempo. O tempo passa e assim faz a sua parte, sem poder esperar que os adultos respondam pela parte deles. Aos pais cabe estarem aptos para acolher, educar e corrigir. Um bom começo, então, seria conhecer por inteiro um filme como esse, antes de demonizá-lo. Também convido o leitor a buscar e cuidar do adolescente que está dentro de si. Para melhor entender e significar aqueles que adolescem, numa época cuja sexualização precoce ocupa o vazio da ausência de outras possibilidades de visibilidade a uma geração com um futuro de incerteza sem precedentes. Incerteza essa que nós, “os mais velhos”, tentamos minimizar por meio da polarização: certo ou errado, preto ou branco, bom ou mau. Estreitamos, assim, nosso campo de visão e assumimos comportamentos reducionistas, atabalhoados, impulsivos e até pueris. Sem perceber, provocamos precocidade em nossas crianças, pelo apelo velado de que elas cresçam logo e nos aliviem de um pesado fardo: o nosso sentimento de despreparo para nossa própria vida.
* Carmita Abdo, psiquiatra, é presidente da Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual
Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707
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