“Tem gente que é perigosa porque tem uma arma na mão. Eu tenho uma coisa dentro de mim que me torna perigoso. Basta me cortar”, explicou o cearense José Leonilson Bezerra Dias — o Leonilson — à crítica Lisette Lagnado em uma de suas últimas entrevistas, no fim de 1992. Então aos 35 anos, o artista plástico teria apenas mais um aniversário antes da morte, provocada por complicações da aids, em maio do ano seguinte, e havia acabado de realizar uma de suas criações mais impactantes: O Perigoso, série de sete desenhos ilustrativos das suas idas ao hospital, inaugurada por uma folha de papel sobre a qual jorrou uma única gota de sangue vermelho e fresco — que desde então se coagulou e escureceu. A partir desta sexta-feira, 23, ela é um dos mais de 300 trabalhos do artista que cobrem as paredes do Masp, em São Paulo, na exposição Leonilson: Agora e as Oportunidades, dedicada aos seus últimos cinco anos de produção e de vida.
Leonilson: são tantas as verdades – Lisette Lagnado
Parte da programação de 2024 do museu, voltada a histórias da diversidade LGBTQIA+, a mostra enfatiza os trabalhos inspirados pela homossexualidade do artista, sua relação com a doença e seus dilemas pessoais. Assumidamente autobiográfico, Leonilson não dava nome aos bois nem oferecia explicações claras, mas utilizava figuras e palavras simples rodeadas por eloquentes espaços vazios para expor seu drama em desenhos, pinturas e bordados. Suas obras logo se tornaram não só um registro do calvário pessoal, mas testemunho trágico da epidemia da aids.
Parte da geração 80, Leonilson era inegavelmente pop, o que fez dele um equivalente do cantor Cazuza nas artes plásticas. Recorria a letras de músicas para adornar suas ilustrações, escrevia também em inglês e espanhol, traçava grafismos identificáveis com referências a mapas, cartuns e à arte de rua — e os coloria em tons vibrantes. Assim como os americanos (e contemporâneos) Keith Haring e Jean Michel-Basquiat, Leonilson partiu de inspirações marginais, da crônica da vida gay urbana à arte popular, para atingir uma universalidade notável. Não tardou, como ambos, a ver as adversidades cruzarem seu caminho — Basquiat foi vitimado pelas drogas e Haring também pelo vírus HIV.
É na transição da arte luminosa para seu introspectivo período final que a mostra do Masp capta Leonilson. Em resposta ao cerceamento da liberdade física, passou a incorporar a temática homossexual em suas obras, tanto para expor seus desejos quanto para provocar. Apesar da criação católica, não se sentia culpado pela contradição entre o Deus do Vaticano e seu desejo carnal, ilustrando encontros em toaletes, fetiches masoquistas e figuras masculinas entrelaçadas a símbolos religiosos — na sua visão, “a Bíblia é um livro não apenas gay, mas muito gay”. Não se considerava militante, mas defendia que o amor entre homens fosse como qualquer outro e se solidarizava com outras minorias. No trabalho de 1991 que dá nome à mostra, sugere ser um só junto aos negros, judeus, mulheres, pessoas com deficiência e comunistas. Mesmo assim, recusava que suas obras fossem vistas como meras mensagens políticas, e por isso as preenchia de vazios e silêncios enigmáticos.
Pouco após produzir Agora e as Oportunidades, Leonilson recebeu o diagnóstico de HIV, que logo reconfigurou toda a sua arte. Com ares de marcha fúnebre, a obra dali até 1993 é moldada pela passagem do tempo e o avanço da doença. Ilustrações feitas para a coluna de Barbara Gancia no jornal Folha de S.Paulo registram o enfraquecimento de suas funções motoras, partindo de críticas precisas ao governo Collor até um trabalho final rabiscado em folha de caderneta com os dizeres: “Não ouço, não vejo, não falo”. Ao mesmo tempo, gravava fitas para um projeto que nunca pôde finalizar, todas recuperadas pelo cineasta Carlos Nader para o documentário A Paixão de JL (2015), também exibido no museu. Nelas, narra o medo anterior à doença, sua descoberta, os impactos na vida romântica e a relação com os pais — que amava, mas para os quais só se assumiu por necessidade, quando o fim da vida já era certeza.
Em seus últimos meses, a tragédia foi agravada pelo surgimento de uma alergia às tintas. Ele, então, se voltou aos desenhos e aos bordados — interesse vindo da criação por uma mãe costureira e um pai comerciante de tecidos. Assim concebeu sua instalação final, inaugurada na Capela do Morumbi, em São Paulo, semanas após sua morte e recriada no Masp. Desde então, o artista foi celebrado em centenas de exposições dentro e fora do Brasil, e figura nas coleções de museus como o MoMA de Nova York e a Tate Gallery londrina. Mas não é o reconhecimento que o imortaliza, e sim a lacuna que deixa. Como nos espaços em branco das telas que pintou, Leonilson se faz presente na ausência.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907