Sentada em uma calçada, sem maquiagem e com os cabelos desgrenhados, Lady Gaga tenta explicar por que, em 2010, chocava o mundo ao comparecer à cerimônia do VMA, premiação do canal MTV, com um surreal vestido de carne. “Quando os produtores queriam que eu fosse sexy, eu fazia algo absurdo para sentir que ainda estava no controle”, diz ela, em um trecho do documentário Gaga: Five Foot Two (2017), da Netflix. Corta para 2019. A estranha cantora americana toma um banho de loja e, com um elegante longo preto e ostentando joias estimadas em 30 milhões de dólares, recebe o Oscar de melhor canção original pelo hit Shallow, tema do filme Nasce uma Estrela, protagonizado por ela e Bradley Cooper. No discurso de agradecimento, digno de uma conferência do Ted Talks, Gaga diz que o importante não é vencer, mas, sim, nunca desistir. “Se você tem um sonho, lute por ele”, afirmou.
O que separa a Lady Gaga glamourosa daquela que veste carne? Uma necessidade urgente de reinvenção. Evidentemente, tal jornada é trilhada por ela a partir de um apurado senso de marketing. E as diferentes fases encarnadas até aqui ganharam um novo capítulo com o recém-lançado disco, Chromatica, o sexto da carreira da cantora. Após se aventurar no jazz e no country, Gaga volta a beber da fórmula que a fez famosa: o pop dançante e descompromissado que conquistou as pistas de dança e o nicho do público LGBT.
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Não à toa Chromatica causou estranhamento em uns — os amantes da indefectível e melosa Shallow — e gritos de euforia em tantos outros — os ditos fãs originais, que carregam o apelido carinhoso de little monsters, ou monstrinhos em português. O repertório bate-estaca aliado a videoclipes apocalípticos, que parecem saídos de um cenário abandonado da franquia Mad Max, é uma combinação que devolve Gaga à zona de conforto, mas que também se mostra um teste de resistência: o público alcançado pela sua versão limpinha continuará fiel? A resposta é incerta, mas pode residir na trajetória de erros e acertos de muitos antecessores.
Apesar de rechaçar comparações com Madonna, Gaga segue certa agenda da veterana e de outros “esquisitões da música”, como o incomparável David Bowie. Todos, em algum momento, se livraram da extravagância para revelar uma figura humana, quase mortal, sem a máscara da maquiagem e do figurino carregados. O cinema, de braços abertos para a boa bilheteria que as estrelas da música trazem consigo, se mostrou não só um campo fértil para a experiência, mas também um passaporte eficaz para a conquista de novos admiradores. Ampliar a base de fãs e se tornar mais palatável era necessidade de Gaga, que precisou reconquistar a relevância aos poucos perdida.
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Se o início da carreira foi marcado por inovações estéticas e choques culturais, com os interessantes The Fame (2008) e Born This Way (2011), o disco seguinte, o confuso e pretensioso Artpop (2013), foi um tiro no pé — a própria, aliás, prefere esquecer que esse álbum existiu. E justamente assim, como se nada tivesse acontecido, Gaga passou a se comportar como uma lady (ops): um bom exemplo da fase comedida se deu no show de intervalo do Super Bowl 2017 — apesar do clima político quente do lado de fora do estádio do tradicional evento esportivo, Gaga, crítica de Donald Trump, apenas cantou, rebolou e entreteve a plateia, sem protestos ou polêmicas.
A virada na imagem e o atestado de talento certificado pelo Oscar deram à nova Gaga o direito de vestir, por que não, os velhos figurinos. No repertório de Chromatica, ela se volta para os jovens com Rain On, gravada com Ariana Grande, e flerta com o fenômeno global do k-pop, com a grudenta Sour Candy, feita em parceria com o grupo coreano Blackpink. Num aceno ao público mais velho, um dueto com Elton John na imprevisível balada pop Sine from Above.
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Por falta de sorte, o fato é que o álbum tem um repertório 100% dançante, lançado quando as pessoas ainda estão em casa, receosas (ou proibidas) de se aglomerarem. Fun Tonight, no entanto, se ajusta ao período de isolamento: “Sinto como se estivesse em uma prisão infernal / Enfio minhas mãos através das barras de aço e grito”. Para completar, no refrão: “Não estou me divertindo esta noite”.
Previsto para abril, o disco foi adiado para o fim de maio: Gaga sabia que faixas alegres não cairiam bem no início da pandemia nos Estados Unidos. Enquanto isso, ela organizou um estrelado evento on-line da OMS, o One World: Together at Home, em prol das vítimas da Covid-19, feito semelhante ao USA for Africa, de Michael Jackson, em 1985. Resta saber se os últimos acontecimentos políticos nos Estados Unidos não vão atrapalhar a recaída extravagante da cantora.
Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690
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