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Karl Lagerfeld, o kaiser que reinventou Chanel

Estilista alemão, que morreu nesta terça-feira aos 85 anos, tinha um contrato vitalício com a 'maison' francesa

Por Mario Mendes
Atualizado em 4 jun 2024, 15h51 - Publicado em 19 fev 2019, 14h28
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  • Karl Lagerfeld (1933-2019) – o estilista que morreu nesta terça-feira, em Paris, de causas ainda não reveladas – era uma celebridade tão famosa quanto uma estrela do rock. A ponto de sua silhueta de perfil – cabelos longos em rabo de cavalo, óculos escuros, colarinho alto – ser tão reconhecível que virou logotipo da marca de moda que levava seu nome. Ele também era o designer por trás da grife italiana Fendi – desde 1965 – conhecida por suas peles, bolsas e acessórios caixa altíssimas. Mas ele era, sobretudo, Chanel. Desde que assumiu a marca como diretor criativo, em 1983, Lagerfeld tirou o mofo e literalmente ressuscitou de maneira retumbante a maison fundada por Gabrielle “Coco” Chanel durante a I Guerra Mundial. O icônico, porém vetusto, tailleur de tweed inventado por Mademoiselle Chanel rejuvenesceu, passando a circular combinado com jeans ou até acompanhado por rebeldes camisetas de inspiração punk. Resultado, a casa de propriedade da família Wertheimer tornou-se o fashion brand mais poderoso do planeta e hoje é um dos únicos atuando de maneira independente dos grandes conglomerados do mercado de luxo, como LVMH e Kering.

    Conhecido como “kaiser”, devido à origem alemã – alcunha que não gostava – Lagerfeld cultivava a imagem excêntrica con gusto vestindo-se invariavelmente de preto, com o cuidado de nunca remover as luvas (“para não sujar as mãos”, justificava) e raramente os óculos escuros (“enxergo mal sem eles, são lentes com grau, mas os tiro para conversar de perto com as pessoas”, explicava). Não deslizava para a caricatura graças à postura aristocrática, o ar levemente esnobe, evitando exageros e fazendo a piada antes que outrem lançasse mão: “Não misturo cores para não parecer uma arara”, declarou em entrevista para as Páginas Amarelas de VEJA, em 2013.

    Karl Lagerfeld nasceu em Hamburgo, Alemanha, em 10 de setembro 1933 ou 1935 – mais tarde assumiu a primeira data, alegando um erro de cartório provocado pela mãe. Filho de um empresário bem sucedido nos negócios – importador na Europa do leite em pó Glória – e uma mãe elegante, altiva e glacial, ambos na casa dos 40 e 50 anos, quando o estilista nasceu. Logo depois da II Guerra – período sobre o qual preferia não se manifestar: “A guerra foi um problema da geração de meus pais”, resumia – deixou a Alemanha definitivamente por Paris, afinal “eu falava e escrevia fluentemente alemão, inglês e francês desde os seis anos de idade”. E também seguindo o conselho materno: “Hamburgo é uma porta para o mundo, uma porta de saída”.

    O ponto de partida na carreira foi o prêmio da Secretaria Nacional da Lã, em 1954, na categoria mantô. O vencedor na categoria vestido era um jovem magro e tímido chamado Yves Saint-Laurent, com quem Lagerfeld estabeleceu grande amizade que azedou completamente nos anos 1970. Viciado em trabalho desde sempre, ele passou pelas maisons Balmain e Patou até aterrissar no cargo de estilista da marca Chloé, em 1964, já na era da moda pronta para vestir – o prêt-à-porter – que colocou em xeque os rígidos cânones da alta-costura. No ano seguinte, emplacaria também como estilista da italiana Fendi, além de assinar criações para a grife que levava seu nome.

    Ele manteve o ritmo, o pulso e a sintonia com o que acontecia durante a hedonista década de 70 do século passado, acompanhado por uma entourage de artistas e modelos conhecida no circuito noturno de Paris – entre eles o ilustrador Antonio, a top model Pat Cleveland e o dândi Jacques des Bascher, com quem se envolveu afetivamente da mesma maneira que aconteceu com Saint-Laurent e, dizem, foi a real causa da ruptura entre os dois. Mas o melhor ainda estava por vir.

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    Em 1982 ele assinou contrato com os Wertheimer como responsável pelo estilo da então demodé maison Chanel. Já na primeira coleção, em 1983, foi um susto, um choque e uma consagração. A bordo de imensa bagagem cultural, Lagerfeld fez uma inesperada e inteligente releitura pop e rock’n’roll do clássico vocabulário Chanel: o tailleur de tweed, a bolsa tiracolo com alças de correntes douradas, as pérolas, o chapéu de palha, os sapatos bicolores, a camélia. Esses símbolos que marcaram a moda do século XX nunca mais seriam os mesmos e, ao mesmo tempo, se tornaram objetos de desejo de mulheres de todas as idades e todos os orçamentos, ainda hoje. Alavancou inclusive as vendas do Chanel No. 5 – o perfume mais famoso e um dos mais vendidos no mundo desde o seu lançamento na década de 20 – um consolo para todas aquelas que não podiam arcar com um modelo criado nas oficinas da mítica rue Cambom.

    Sim, ele se meteu em polêmicas. Disse que estampas eram de mau gosto e apenas para “mulheres de uma certa idade”, estampou um verso do Corão em um modelo e teve de destruí-lo ao ser ameaçado pelas sempre invocadas autoridades do Islã. Disse que a cantora Adele é gorda, com todas as letras, e que os tapetes vermelhos das premiações do showbiz são irremediavelmente cafonas. Sem falar que demitiu a modelo Inés de la Fressange, que encarnava a própria Mademoiselle Chanel em suas primeiras coleções para a marca, porque ela posou para o busto de Marianne, símbolo feminino máximo da Revolução Francesa, alegando que com isso ela havia se tornado “popular demais”.

    Nada disso porém abalou seu reinado na casa ou prejudicou o trabalho feito, invariavelmente festejado pela crítica e consumido por uma ávida e endinheirada clientela. Além de ser o fotógrafo oficial de todas as campanhas publicitárias da marca. Na paralela, desenhou uma garrafa de Coca-Cola Zero – que ele bebia aos montes – e foi um dos primeiros grandes da moda a assinar coleção para a gigante rede de varejo internacional H&M – que se esgotou em poucos minutos. Em 2016 cravou um feito inédito na geo-política fashion ao realizar o primeiro desfile em Cuba, em uma praça da Havana pós-Fidel. 

    Karl Lagerfeld esteve duas vezes no Brasil. Em 1963 ainda jovem, compareceu no Rio de Janeiro ao casamento de um amigo com uma garota brasileira: “Era outro século, outro planeta e, certamente, outro Brasil”, comentou na entrevista a VEJA. Voltou cinquenta anos depois, quando passou cerca de 24 horas em São Paulo, para participar da festa de abertura da mostra fotográfica The Little Black Jacket, na Oca, no Ibiruapuera, em 2013. No mesmo ano desenhou um coleção de calçados plásticos para a marca brasileira Melissa.

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    Nos últimos tempos, vinha recebendo críticas não muito favoráveis devido ao gigantismo dos desfiles Chanel – grandes encenações realizadas no Grand Palais, em Paris, reproduzindo supermercados, aeroportos, transatlânticos, lançamento de foguete, praias etc – e por estar repetindo fórmulas. Tudo verdade, mas qual outro em seu métier realizou tantos feitos, manteve a relevância durante tanto tempo, colocou no ar cerca de 14 coleções anuais até os 85 anos? Nem poderia ser de outra forma, afinal, seu contrato com Chanel era vitalício.

    Não é café pequeno e sua morte põe fim a uma era.

    O alerta de que havia algo errado com a saúde do mestre foi dado durante a recente temporada de alta-costura, no mês passado, quando ele não apareceu no final do desfile Chanel para agradecer os aplausos, sendo substituído por sua assistente Virginie Viard. É ela quem acabou sendo apresentada pela casa, horas depois do anúncio da morte de Lagerfeld, como a nova diretora criativa. Encerraram-se assim as especulações sobre o nome da estilista inglesa Phoebe Philo, que era dada como certo para substituir o kaiser. Seria irônico, já que foi Phoebe quem o substituiu quando ele deixou a Chloé. Na época, ele chegou a comentar que gostava da colega, porque era boa em “fazer camisetas”. Puro Lagerfeld.

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